AS MINHAS CONVERSAS POR AÍ

sexta-feira, 14 de outubro de 2022

DA PERCEPÇÃO SOCIAL DE AUTORIDADE

 Foi divulgado o relatório "O Momento Atual da Reforma dos Cuidados de Saúde Primários em Portugal 2021/2022" produzido pela Associação Nacional de Unidades de Saúde Familiar. Com base em dados dos últimos 12 meses, até Setembro, em 78% das Unidades de Saúde Familiar registou-se pelo menos um episódio de agressão aos profissionais que nelas desempenham funções. Os comportamentos de agressão são de tipologia diversa e apesar do seu volume muito elevado têm vindo a decrescer. No entanto, importa considerar os episódios que ocorrem noutras estruturas do sistema de saúde, hospitais por exemplo, que também são recorrentes.

Estes níveis de ocorrência são ainda mais preocupantes se considerarmos a frequência com outras classes, professores (ontem abordei aqui um epiódio grave) e agentes de autoridade, por exemplo, são também alvo de comportamentos agressivos com tipologia variada e alguns de significativa gravidade.

As dificuldades genéricas das pessoas, os contextos funcionais e a qualidade percebida ou sentida na resposta dos serviços estarão associadas aos comportamentos. No entanto, sem minimizar estas variáveis, designadamente no que respeita aos serviços de saúde, parece-me também pertinente reflectir numa outra perspectiva, a auto-regulação dos comportamentos individuais.

Na análise a esta questão e de uma forma necessariamente breve, creio que vale a pena considerar dois aspectos que julgo essenciais, a mudança na percepção social de autoridade e de traços de autoridade e o sentimento de impunidade, que me parecem fortemente ligados a estes fenómenos.

Uma observação minimamente atenta às mudanças sociais, culturais e económicas nas últimas décadas, permite, creio, constatar como tem vindo a mudar significativamente a percepção social do que poderemos chamar de traços de autoridade.

Entre outras profissões, os médicos e enfermeiros, mas também professores, agentes de autoridade ou magistrados, por exemplo, eram percebidos, só pela sua condição profissional, como fontes de autoridade, como também os velhos, curiosamente. Tal processo alterou-se, a profissão ou a idade já não conferem “autoridade” que regule a relação e iniba a utilização de comportamentos de agressão. Dito de outra maneira, a identificação como médico ou enfermeiro, através da "bata", polícia com a "farda" ou professor com o "peso social" da função e da escola, ou os “cabelos brancos” da idade, já não são, por si sós, reguladores dos comportamentos. Estas mudanças implicam uma reflexão profunda, pois sendo um fenómeno ainda "novo", não poderemos recorrer unicamente às soluções "velhas".

Quero sublinhar que este entendimento não tem rigorosamente a ver com a ideia do "respeitinho" ou do medo e muito menos com dar cobertura a "autoritarismo" e abusos de poder de quem quer que seja sobre quem quer que seja.

O segundo aspecto que me parece de considerar remete para um ambíguo e abrangente sentimento instalado em Portugal de que não acontece nada, faça-se o que se fizer. Este sentimento que atravessa toda a nossa sociedade e camadas sociais é devastador do ponto de vista de regulação dos comportamentos, ou seja, podemos fazer qualquer coisa porque não acontece nada, a “grandes” e a “pequenos”, mas sobretudo a "grandes", o que aumenta a percepção de impunidade dos “pequenos”.

Considerando este quadro, parece importante um trabalho no âmbito da formação cívica no sistema educativo, dispositivos e recursos de apoio e na formação de profissionais para a gestão e prevenção de situações de conflito, bem como um discurso político e social consistente de valorização dos profissionais e da autoridade, não do autoritarismo.

Também por razões desta natureza e dado o clima de agressividade e crispação demasiado presente nas relações interpessoais, presenciais ou virtuais, me parece perfeitamente justificada a existência de uma abordagem escolar para todos os alunos e de acordo com a idade de questões relativas a cidadania e desenvolvimento.

Sabemos, que contrariamente ao “autoritarismo”, a autoridade não é atribuída ou devolvida por decreto. A autoridade assenta em competência, valorização, respeito, maturidade cívica, solidez ética, etc.

Por outro lado, finalmente, é ainda fundamental que se agilizem e sejam divulgados processos de punição e responsabilização séria dos casos verificados o que contribuirá para combater a percepção de impunidade.

Como em múltiplas áreas do nosso funcionamento em comunidade e do desenvolvimento pessoal, pela educação é que vamos.

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