AS MINHAS CONVERSAS POR AÍ

sexta-feira, 12 de novembro de 2021

A PALMADA EDUCATIVA. OUTRA VEZ

 No DN encontrei um texto de opinião de Elisabete Ferreira “Da palmada educativa à criminalização dos castigos corporais” em que a autora reflecte sobre o enquadramento jurídico dos “castigos corporais” no Código Penal Português que desde 2007 estabelece no Artº 152 a proibição dos “castigos corporais”.

A autora embora, expressando reservas evidentes face aos castigos corporais escreve: “hesitamos quanto ao enquadramento jurídico a dar à aplicação de uma singular palmada educativa. Ou, pelo menos, duvidamos da razoabilidade da prossecução de um processo penal contra este progenitor e da eficácia de uma eventual condenação em pena de prisão, ainda que suspensa na sua execução, como modo de prevenir a reincidência.”

Não tenho competência nem é o meu objectivo discutir a questão jurídica embora tenha apreciado a inclusão do artº52 no Código Penal, mas sim esta velha ideia da palmada educativa. Algumas notas.

Deixem-me recordar que em 2015 o Conselho da Europa pressionava o Governo Francês para adoptar legislação que expressamente proibisse bater nas crianças. A então Secretária de Estado da Família não pretendia alterar a lei pois uma parte da população seria favorável aos castigos corporais e não queria "dividir o país em dois campos: os que são pela palmada e os que são contra.”

A mesma responsável afirmava ainda que "persiste uma tolerância baseada no costume, a do direito de correcção, que é aceite desde que seja ligeira e tenha um fim educativo". Ao que na altura li ninguém interrogou a Secretária de Estado sobre como avaliar a intensidade da palmada para que não passe de ligeira.

Já muitas vezes aqui tenho afirmado, a questão do recurso aos castigos físicos ou às agressões verbais e humilhação como forma de educar é recorrente e está sempre presente na agenda de qualquer encontro ou conversa entre e com pais sendo, aliás, frequentes os discursos de legitimação destas “estratégias educativas”.

Se estivermos atentos reparamos que quando na imprensa generalista se abordam questões relativas a comportamentos menos positivos de crianças ou adolescentes são inúmeros os comentários e discursos sobre a alegada falência das famílias na definição de regras e limites nos comportamentos de crianças e adolescentes. Muitos destes discursos e comentários são normalmente acompanhados de referências ao facto de não se recorrer a umas “palmadas”, à “pedagogia do chinelo”, “uma boa palmada dada a horas” ou outras variações no mesmo tom, com uns “tabefes” a coisa resolvia-se.

As alusões às dificuldades das famílias ou da escola na regulação dos comportamentos de crianças e adolescentes podem ser justificáveis, mas a ideia de lidar com estas dificuldades através do bater e dos castigos severos continua a ser preocupante quando, também são conhecidos muitos trabalhos que sublinha a ineficácia deste tipo de abordagens. Ninguém pode garantir que foram ou que são as “tareias” que constroem pessoas de bem.

É de recordar que em 2018 a Academia Americana de Pediatria produziu novas orientações sobre a parentalidade afirmando veementemente que bater nas crianças, insultá-las, humilhá-las ou envergonhá-las são comportamentos a banir. Os efeitos positivos são nulos e os negativos estão bem demonstrados. Esta posição é, aliás, recuperada na peça do Público

Uma outra referência  a um trabalho desenvolvido pela Universidade de Pittsburgh nos EUA divulgado na Child Development em 2017 que considerando diferentes variáveis seguiu 1482 alunos durante nove anos e evidenciou uma relação sólida entre o que foi considerado “parentalidade severa” (recorrer com regularidade ao gritar, bater ou outro tipo de comportamento coercivo, além de ameaças físicas e verbais como forma de punição) e baixo rendimento escolar e problemas de comportamento nas crianças envolvidas nesse “modelo” de educação familiar.

Dados divulgados em 2019 relativos ao Projecto Geração XXI, do Instituto de Saúde Pública da Universidade do Porto, que acompanha desde o nascimento um número muito significativo de crianças na área metropolitana do Porto.

Cerca de 75% das crianças com 7 anos serão vítimas de agressão psicológica ou castigos corporais em contexto de educação familiar. Cerca de 10% sofreram agressões graves (como bater com cinto ou objecto contundente ou queimar) com frequência.

As avaliações mostram que que impacto na saúde é significativo, 58% apresentam valores de inflamação elevados, quase o dobro das que não são vítimas de maus-tratos.

Sugerem ainda que mães com história de violência doméstica desenvolvem mais comportamentos de agressão aos filhos do que as mães que não reportam um passado de maus tratos. Considerando a variável escolarização e nível económico, sem surpresa, níveis mais elevados parecem mais associados a agressão psicológica e castigos corporais e níveis menos qualificados associados a formas de violência mais graves,

Um trabalho mais recente de Liz Gershoff divulgado em 2021 é também elucidativo sobre a mesma questão.

Sabemos e não esquecemos que os “castigos corporais” podem ir da mais ligeira palmada à mais pesada tareia e também sabemos que bater é um tipo de comportamento inscrito na prática de muitas famílias na sua relação educativa com os filhos.

Na verdade, os castigos corporais ainda são uma "ferramenta" educativa em muitas famílias e, é conhecido, também em instituições que acolhem crianças sendo que mesmo que no âmbito da justiça a questão é complexa como algumas decisões judiciais ilustram.

A ver se nos entendemos, bater ou castigar severamente as crianças não é uma actividade educativa, gritar ou agredir verbalmente de forma regular não é uma actividade educativa. O comportamento gera comportamento e adultos que não se auto-regulam dificilmente ajudam crianças a ser auto-reguladas. Aliás, também se sabe que crianças que foram batidas tornam-se frequentemente pais que batem.

No entanto e dito tudo isto, também entendo que pontuais comportamentos inadequados ou incompetentes não significam necessariamente que estejamos perante pessoas, pais, más ou incompetentes.

Todos nós, alguma vez, agimos de uma forma menos ajustada ou adequada com os nossos filhos e isso não nos transforma em pessoas más, significa que somos apenas pessoas, que não somos perfeitos como perfeitos não são os nossos filhos e que nada destes matérias é feito seguindo escrupulosamente um qualquer "manual de instruções" dos muitos que agora aparecem.

Assim sendo, creio que devemos ser cautelosos, quer na defesa da "estalada educadora" ou “palmada educativa”, quer na diabolização definitiva de pais que numa situação eventualmente esporádica e de tensão assumem um comportamento de que podem ser os primeiros a arrepender-se.

Esta nota, não branqueadora ou desculpabilizante de nada, pode não ser particularmente simpática, mas estou cansado, tanto de discursos de legitimação do efeito "educativo" da violência física ou verbal dirigida a crianças, como de discursos demagógicos e, por vezes hipócritas, que clamam pelo "crucificação" cega de uma pessoa, o outro que bate, mas são produzidos por gente desatenta ou mesmo autora ou apoiante doutros comportamentos dirigidos a miúdos tão indignos quanto a "estalada" ainda que menos visíveis.

Finalizando, embora saiba que a legislação mesmo quando é imperativa é entendida como indicativa e, portanto, desrespeitada como temos tantos exemplos em várias matérias, é bom não esquecer que estamos a falar de direitos, não de opiniões.

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