Foi ontem apresentado o relatório Anual da Comissão Nacional Promoção dos Direitos e Protecção das Crianças e Jovens. Como se pode verificar no gráfico da peça do Público e numa nota global breve, à excepção da exposição de crianças e jovens a situações de violência doméstica ou mesmo o seu envolvimento foi a situação que mais se agravou face a 2019, 7,7%. Também se registou um ligeiro aumento nos casos de maus tratos psicológicos, de 284 em 2019 para 288 crianças em 2020. Todos os outros indicadores desceram.
Quer a subida mais relevante dos casos que envolvem violência
doméstica, quer nas descidas também verificadas no número de casos acompanhados
pelas CPCJ, menos processos abertos para avaliação, menos medidas excepcionais
como as retiradas de urgência e menos comunicações, estarão certamente associadas
às circunstâncias determinadas pela pandemia, o confinamento familiar e o
encerramento das escolas. A escola,
professores e auxiliares, são muito frequentemente quem se apercebe de
situações de mal-estar das crianças, “são os olhos do sistema de protecção”,
também estiveram menos próximos das crianças.
Uma reflexão agora mais centrada no aumento significativo da exposição e envolvimento de crianças e adolescentes em situações de violência doméstica.
Depois de ter chumbado em 2019 uma
iniciativa do BE no mesmo sentido, o PS apresentou há pouco tempo uma proposta
parlamentar no sentido de reconhecer a crianças e jovens o estatuto de vítimas
em situações de exposição a violência doméstica mesmo quando não sejam
directamente atingidos. A proposta do PS junta-se a uma do PSD também
recentemente apresentada e que difere pelo não estabelecimento de limite de
idade.
Acresce que também existe uma petição
pública subscrita por mais de 50 mil cidadãos com o objectivo de promover também a aprovação do
estatuto de vítima para crianças envolvidas em contextos de violência
doméstica.
É de facto um problema relevante. Em Janeiro o Governo
lançou um concurso com o objectivo de reforçar o apoio psicológico e
psicoterapêutico para crianças e jovens vítimas de violência doméstica
atendidas e/ou acolhidas na Rede Nacional de Apoio às Vítimas de Violência
Doméstica.
Segundo informação divulgada na altura estava prevista uma
verba de 2,78 milhões de euros destinada a colmatar as “necessidades de
serviços de apoio especializado, privilegiando abordagens psicoterapêuticas
focadas no trauma, com a designação de Respostas de Apoio Psicológico (RAP)
para crianças e jovens vítimas de violência doméstica”.
Nesta iniciativa estão a colaborar a Comissão para a
Cidadania e a Igualdade de Género e a Ordem dos Psicólogos Portugueses (OPP)
através de um protocolo de colaboração na resposta a construir.
Como disse aquando da divulgação parece-me uma boa notícia,
sobretudo num tempo em que escasseiam. Esperemos, no entanto, que se concretize
e não seja algo que fica por assim mesmo. Não estranharei, mas era bom que
avançasse tal como a aprovação do estatuto de vítima para as crianças e jovens
envolvidos.
Importa ainda recordar que entidades como o Instituto de
Apoio à Criança e a Ordem dos Advogados defendem a necessidade de maior
protecção para crianças em contextos de violência doméstica.
O reforço do dispositivo de apoio anunciado seria, do meu
ponto de vista mais eficaz, com outro enquadramento legal mais amigável para as
crianças.
De facto, parece importante a necessidade de protecção
nestes casos considerando o número de situações e os efeitos destas vivências
na vida das crianças e adolescentes.
Para além de sublinhar os danos potenciais que esta
exposição pode provocar nas crianças gostava de chamar a atenção para um outro
potencial efeito nas crianças que assistem ou estão envolvidas em episódios,
por vezes violentos, de violência doméstica, os modelos de relação pessoal que
são interiorizados. Aliás, nos últimos anos tem-se verificado que a maioria das
queixas de violência doméstica é apresentada por mulheres jovens o que permite
pensar em crianças pequenas que assistirão a estes episódios.
Numa avaliação por defeito aos casos participados de
violência doméstica estima-se que cerca de metade serão testemunhados por
crianças. Se considerarmos que existem muitíssimas situações não reportadas,
pode concluir-se que estas testemunhas, por vezes também vítimas, serão em
número bem mais elevado.
Este quadro lembra o velho adágio "Filho és, pai
serás", ou seja, num processo de modelagem social muitas crianças tenderão
a replicar ao longo da sua vida, em adultos também, os comportamentos a que
assistiram e que, tal como podem produzir efeitos traumáticos, poderão adquirir
aos seus olhos, infelizmente, um estatuto de normalidade.
Não é certamente por acaso que estudos recentes em Portugal
evidenciaram números elevadíssimos de violência em casais de jovens namorados
universitários, uma população já com níveis de qualificação significativos.
Neste contexto e com o objectivo de contrariar uma espécie
de fatalidade em círculo vicioso, os miúdos assistem à violência doméstica,
replicam a violência, a sociedade é violenta, quando crescem são violentos em
casa, e assim sucessivamente, importa que os processos educativos e de
qualificação sublinhem a dimensão, a formação cívica e o quadro de valores.
Não é nada de novo, a afirmação desta necessidade.
Esperemos que as iniciativas divulgadas sejam mais do que
promessa e aumentem significativamente os níveis de protecção e apoio a
crianças e jovens pois o número de situações de risco é muito grande e está a aumentar.
Como afirma, Benedict Wells em “O fim da solidão”, “Uma
infância difícil é como um inimigo invisível. Nunca se sabe quando nos vai
atingir”.
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