AS MINHAS CONVERSAS POR AÍ

quinta-feira, 7 de março de 2019

FAMÍLIA, CRIANÇAS E VIOLÊNCIA DOMÉSTICA


Continuam a suceder-se os trágicos episódios de violência sobre as mulheres. Ontem e hoje, dia que foi considerado Dia de Luto Nacional pelas vítimas de violência doméstica, foram conhecidos novos casos.
Como sabemos o mundo da violência doméstica é bem mais denso e grave do que a realidade que conhecemos, ou seja, aquilo que se conhece, apesar de recorrentemente termos notícias de casos extremos, é "apenas" a parte que fica visível de um mundo escuro que esconde muitas mais situações que diariamente ocorrem numa casa perto de si. É também preocupante que diferentes estudos realizados em Portugal evidenciam um elevado índice de violência presente nas relações amorosas entre gente mais nova mesmo quando mais qualificada. Muitos dos intervenientes remetem para um perturbador entendimento de normalidade o recurso a comportamentos que claramente configuram agressividade e abuso ou mesmo violência.
O fenómeno da violência doméstica é muito complexo e requer uma abordagem em diferentes dimensões, educação e formação, sistema judiciário e código penal, Tribunais e juízes vocacionados para estas problemáticas, questão que tem estado na agenda, código e molduras penais, apoios e protecção das vítimas, etc.
Não sei o impacto da existência de um Dia de Luto Nacional mas não sou muito optimista. No entanto se servir para desencadear um verdadeiro movimento no âmbito da cidadania e dos diferentes universos envolvidos de reflexão e desenvolvimento de iniciativas concertadas, eficazes e com recursos já será um contributo.
Um dos aspectos que por vezes é negligenciado no mundo da violência doméstica prende-se com as crianças presentes nesses contextos familiares e o impacto que nelas pode causar este tipo de experiência. Umas notas breves a este propósito.
Em primeiro lugar recordar que os dados disponíveis sugerem que em cada ano e em termos médios, 10 crianças ou adolescentes ficam órfãs na sequência de um episódio de violência doméstica. Muitos porque perdem a mãe por homicídio realizado por marido ou companheiro, outros porque os pais foram presos ou se suicidaram após o crime. Não é necessário sublinhar o impacto destas situações na vida de crianças e adolescentes.
Parece-me também de considerar o elevadíssimo número de crianças que assistem a cenas de violência doméstica e dos efeitos prováveis dessas vivências. Segundo o Relatório relativo a 2017 produzido pela Comissão Nacional de Promoção dos Direitos e Protecção das Crianças, é de 12,5% a percentagem de casos sinalizados devido a exposição à violência doméstica.
Para além de sublinhar os danos potenciais que esta exposição pode provocar nas crianças gostava de chamar a atenção para um outro potencial efeito nas crianças que assistem a episódios, por vezes violentos, de violência doméstica, os modelos de relação pessoal que são interiorizados. Aliás, nos últimos anos tem-se verificado que a maioria das queixas de violência doméstica é apresentada por mulheres jovens o que permite pensar em crianças pequenas que assistirão a estes episódios.
Numa avaliação por defeito aos casos participados de violência doméstica estima-se que cerca de metade serão testemunhados por crianças. Se considerarmos que existem muitíssimas situações não reportadas, pode concluir-se que estas testemunhas, por vezes também vítimas, serão em número bem mais elevado.
Através de um processo de modelagem social que nem sempre a educação escolar consegue contrariar muitas crianças poderão replicar ao longo da sua vida, em adultos também, os comportamentos a que assistiram e que, tal como podem produzir efeitos traumáticos, poderão adquirir aos seus olhos, infelizmente, um estatuto de normalidade. 
Neste contexto e com o objectivo de contrariar uma espécie de fatalidade em círculo vicioso, os miúdos assistem à violência doméstica, replicam a violência, a sociedade é violenta, quando crescem são violentos em casa e assim sucessivamente, importaria que os processos educativos e de qualificação sublinhem a dimensão, a formação cívica e quadro de valores.
Não há nada de novo na afirmação desta necessidade.
Finalmente, a referência a uma questão hoje colocada na imprensa pela Associação Portuguesa de Apoio à Vítima. Os processos de regulação parental decorrem nos Tribunais de Família e Menores enquanto os processos de violência doméstica de correm nos Tribunais Criminais.
Acontece que, felizmente e desde há algum tempo, as crianças são ouvidas nos processos de regulação parental mas, segundo a APAV, também o deveriam ser nos processos que envolvem violência doméstica a que muito provavelmente assistiram ou foram expostos e teriam certamente algo a dizer.
Esta situação mostra a necessidade de concertação e coesão na intervenção neste universo nas suas múltiplas dimensões.
Acresce que a intervenção junto das famílias e a tentativa de contrariar dinâmicas disfuncionais, violência doméstica por exemplo, não dispõe dos meios e recursos suficientes.

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