AS MINHAS CONVERSAS POR AÍ

terça-feira, 2 de outubro de 2018

DO RISCO DA RITALINIZAÇÃO


O PAN apresentou um Projecto de lei no Parlamento cuja discussão será marcada amanhã no sentido de proibir a prescrição de metilfenidato e de atomoxetina a crianças com menos de seis anos. Os dois princípios mais conhecidos pelo seu nome comercial (Ritalina, Concerta, Rubifen no caso do metilfenidato) e  Strattera no caso da atomoxetina, são frequentemente usados para tratamento de situações de hiperactividade com défice de atenção.
A fundamentação para a proposta do PAN assenta nas afirmações contidas nas bulas dos medicamentos onde se afirma, "Ritalina LA não se destina a ser utilizado como tratamento para a PHDA em crianças com menos de 6 anos. Desconhece-se a segurança e eficácia da utilização deste medicamento em crianças com idade inferior a 6 anos." No caso do fármaco Strattera lê-se  "não deve ser utilizado como tratamento da PHDA em crianças com menos de 6 anos e desconhece-se se o medicamento resulta ou se é seguro neste grupo de pessoas".
Como já aqui tenho afirmado o consumo destes fármacos e o diagnóstico das situações para as quais são prescritos requerem uma enorme prudência. No entanto, parece-me pouco defensável que seja o Parlamento a estabelecer regras de prescrição farmacológica em actos médicos.
Retomo algumas notas pois o consumo destes fármacos envolve muitos milhares de crianças e adolescentes.
Como já referi, esta medicação é usada na terapêutica das situações de alegados problemas de comportamento, hiperactividade, défice de atenção ou instabilidade. No entanto, é também usada como “auxílio” aos resultados escolares sendo também conhecida pelo “comprimido da inteligência”.
Esta preocupação tem sido objecto de intervenções recorrentes. Recordo que no Relatório anual do Conselho Nacional de Educação “Estado da Educação 2015” chamava-se a atenção para a questão do consumo de medicação por parte de crianças e adolescentes para alegados problemas de comportamento, hiperactividade, défice de atenção ou instabilidade.
Em 2010 prescreveram-se no SNS 133 562 e em 2016 o número foi 270 492. É ainda de considerar que em 2015 63% do volume do fármaco foi usado entre os 10 e os 19 anos e 26% até aos 9 anos. Os adultos consumiram “apenas” 7% do volume total de prescrições.
São valores impressionantes e altamente preocupantes e que estão em linha com os dados do Infarmed que tem alertado para o disparar do consumo do metilfenidato com os nomes correntes de Ritalina, Concerta ou Rubifen.
Face a este cenário e em diferentes intervenções públicas, especialistas como Mário Cordeiro, Gomes Pedro ou Ana Vasconcelos  têm revelado sempre uma atitude cautelosa e prudente face esta hipermedicação ou sobrediagnóstico e alertado para os riscos destas práticas que, aliás, não se verificam em todos os países. Este tipo de discurso, cauteloso e prudente, que subscrevo, contrasta com a ligeireza, que não estranho, de Miguel Palha que referia há algum tempo no Público as “centenas” de crianças que na sua clínica solicitam “diariamente” o fármaco. A pressão enorme que envolve pais, professores, técnicos e clínicos face ao comportamento de algumas crianças ajuda a perceber a tentação da medicação.
Conheço de forma directa algumas situações verdadeiramente preocupantes.
Pedindo desculpa ela repetição de escritos anteriores, a forma como olhamos, intervimos e exigimos dos comportamentos e resultados escolares dos mais novos mostram que de há uns tempos para cá uma boa parte dos miúdos e adolescentes parece ter adquirido uma espécie de prefixo na sua condição, o "dis", passam a "dismiúdos".
Se bem repararem a diversidade é enorme, ao correr da lembrança temos os meninos que são disléxicos em gama variada, disgráficos, discalcúlicos, disortográficos ou até distraídos.
Temos também as crianças e adolescentes que têm (dis)túrbios ou perturbações. Estes também são das mais diferenciadas naturezas, distúrbios do comportamento, distúrbio do desenvolvimento, distúrbios da atenção e concentração, distúrbios da memória, distúrbios da cognição, distúrbios emocionais, distúrbios da personalidade, distúrbios da actividade, distúrbios da comunicação, distúrbios da audição e da visão, distúrbios da aprendizagem ou distúrbios alimentares.
Como é evidente existem ainda os que só fazem (dis)parates e aqueles cujo ambiente de vida é completamente (dis)funcional ou se confrontam com as (dis)funcionalidades dem muitos contextos escolares, número de alunos por turma excessivo, currículos desajustados, falta de apoios, etc.
Pois é, há sempre um "dis" à espera de qualquer miúdo e senão, inventa-se, "ele tem que ter qualquer coisa".
De forma propositadamente simplista costumo dizer que algumas destas crianças não têm perturbações do desenvolvimento ou dificuldades de aprendizagem, experimentam perturbações no envolvimento e sentem dificuldades na “ensinagem”.
Agora um pouco mais a sério, sabemos todos que existe um conjunto de problemas que pode afectar crianças e adolescentes, esses problemas devem ser abordados, se necessário com medicação, evidentemente, mas, felizmente, não são tantos as situações como por vezes parece. Inquieta-me muito a ligeireza com que frequentemente são produzidos "diagnósticos" e rótulos que se colam aos miúdos, dos quais dificilmente se libertarão e que pela banalização da sua utilização se produza uma perigosa indiferença sobre o que se observa nos miúdos. Aliás, é curioso perceber o que se passa noutros países, França, por exemplo, nesta matéria.
Inquieta-me ainda a ligeireza com que muitos miúdos aparecem medicados, chamo-lhes "ritalinizados", sem que os respectivos diagnósticos conhecidos pareçam suportar seguramente o recurso à medicação. A sobreutilização ou uso sem justificação do metilfenidato e de outros fármacos tem riscos, uns já conhecidos, outros em investigação.
Esta matéria, avaliar e explicar o que se passa com os miúdos e adolescentes, exige um elevadíssimo padrão ético e deontológico além da óbvia competência técnica e científica.
Não se pode aligeirar, é "dis"masiado grave.

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