AS MINHAS CONVERSAS POR AÍ

segunda-feira, 1 de janeiro de 2018

CARTA AO ANO NOVO

Meu caro Ano Novo,

Em primeiro lugar, em nome da hospitalidade e do bem receber que caracteriza os portugueses é com a maior satisfação que, como de costume, te dou as boas vindas ainda que, devo confessar, tal como no ano passado com alguma apreensão.
O prazo de validade do Ano Velho terminou e chegaste, sejas bem aparecido. Não te conheço e portanto não sei exactamente a experiência que possuis, mas creio que como todos os novos não será muita, é assim a vida, não há volta a dar.
Não te quero assustar mas não vais ter tarefa fácil, antes pelo contrário, e parece-me útil que possas conhecer um pouco da realidade que te espera, pelo menos aqui em Portugal, para que te possas organizar no sentido de fazeres o melhor possível.
Temos um Governo assente numa fórmula de apoio política que é inédita e que pouca gente acreditava que funcionasse, até lhe chamaram a geringonça. Vais, aliás perceber que gostamos de dar nomes ao que já tem nome.
Contrariamente ao que se anunciava, houve até gente responsável que vislumbrava a chegada do diabo, a coisa não tem corrido muito mal e até aquela gente lá de fora, União Europeia e representantes dos mercados financeiros têm achado que há alguma diferença para melhor.
Para muita gente a mudança ainda não se faz sentir tanto quanto seria desejável. No entanto,respira-se um ar mais tranquilo, menos crispado, o que é bom, mas verás.
Entretanto seria positivo que pudesses dar uma ajuda, bem que precisamos. Estranhamente existe um pessoal que parece desejar que tudo corra mal mas vais ter que te habituar, nós portugueses somos gente complicada.
O teu companheiro Ano Velho que agora partiu deixou muita amargura com tragédias que nos aconteceram, fogos florestais em que tudo o que podia correr mal, correu muito mal, onde muita gente falhou na sua tarefa e o resultado foram muitas vidas tragicamente perdidas. Espero muito que tu, 2018, não tragas fogo no ventre. Como é normal por cá, vais perceber rapidamente, depois de algo correr mal, durante algum tempo ouvem-se promessas e planos … até à próxima tragédia. Toma atenção, faz tu a tua parte, traz algo mesmo Novo.
Logo de início, é bom que saibas que devido apesar da devastadora situação económica que atravessámos nos últimos anos fruto do mau trabalho de uma rapaziada que por aí tem andado e dos maus hábitos que adquirimos, alguns de nós é claro, as expectativas sobre ti são sempre elevadas, toda a gente envie milhares e milhares de mensagens e use as redes sociais para desejar Bom Ano mostrando a maior convicção.
Estás a ver o que te espera Ano Novo. Bom, tu és novo, vais estar “cá para o que der e vier” e eu quero confiar em ti. Sabes, aqui para nós, sou avô dos netos mais bonitos do mundo, trabalho no universo dos mais novos pelo que sou obrigado, por eles e em nome deles, a ser optimista, conto contigo.
Em termos genéricos posso dizer-te que, de acordo com os estudos, somos um povo triste, desconfiado e sem grande esperança no futuro, o que também é animador como vês. No entanto, para compensar, gostamos de parecer uns “gajos porreiros” e bem-dispostos e adoramos, como vês por esta carta, dizer mal de nós. Também perceberás que somos gente solidária, disponíveis para ajudar, mas pouco atentos ao prevenir.
Quem nos governa passa o tempo a dizer que somos o melhor povo do mundo, a gente percebe. Continuamos ainda atordoados com uma carga fiscal pesada como nunca tivemos e … cá vamos, esperando que … pior não fique.
É também muito importante que saibas que temos uma especial inclinação pelo “esquema” ou, como também se diz, “dar um jeitinho”, vais ver a quantidade de jeitinhos que te vão pedir à chegada e a quantidade de “esquemas” a que vais assistir ao longo da tua estadia por cá. Aliás, para além daqueles esquemas a que já nem ligamos, imagina que um antigo Primeiro-ministro esteve preso e agora aguarda em liberdade o desenvolvimento do processo. Perguntarás porquê e a resposta é …. esquemas.
Um dos maiores, senão o maior grupo económico e financeiro português implodiu com custos brutais que ainda nem estão contabilizados, perguntarás porquê … esquemas claro. Os bancos têm estado a implodir e quem nos tem governado vai salvando os interesses da gente grande à custa, adivinha, … isso mesmo, da gente pequena.
Uns tipos com altos cargos na administração pública, estão acusados, adivinha de quê? Isso mesmo, de esquemas. No entanto, vais reparar rapidamente, toda esta gente afirma estar de consciência tranquila. Talvez tu que és Novo lhes possas explicar o que é consciência.
Também é importante que saibas que a maioria das vezes destas coisas resulta … nada. Um povo como nosso, com uma fortíssima matriz judaico-cristã, dá um enorme valor ao perdão, serão, pois, perdoados e … seguem os esquemas.
Normalmente, temos um governo que, tal como qualquer outro que temos tido, acha que faz tudo bem e é incompreendido por toda a gente e temos uma oposição que acha que o governo faz tudo mal, mas não percebemos muito bem o que faria se fosse governo, porque quando é governo a situação é mais ou menos a mesma e acabam por, basicamente responder perante um sindicato de interesses dos chamados mercados, independentemente de quem, nós, os elegeu. A relação política é assente essencialmente no “contrismo”, a oposição está contra tudo o que vem do Governo que está contra tudo o que vem da oposição. De vez em quando surgem umas excepções como ainda bem recentemente aconteceu com quase todos os partidos de acordo sobre a forma de ampliar e desregular o seu financiamento num processo manhoso que os devia fazer corar de vergonha, se a tivessem.
Adoramos auto-estradas, rotundas e centros comerciais. Temos três portugueses que se acham os melhores do mundo mas dois emigraram, o Cristiano Ronaldo, também conhecido por "CR7" e o José Mourinho, o "Special one",o terceiro anda por aí, chama-se Marcelo Rebelo de Sousa e é o nosso Presidente da República: Vais conhecê-lo rapidamente, anda sempre por aí de um lado para o outro a tirar “selfies” e a distribuir afectos, tem tido um papel positivo na descrispação do clima. Acredito que ainda não percebas o sentido disto mas rapidamente acontecerá.
É verdade que existe muita gente com obra grande na ciência ou na cultura mas por cá são matérias de pouco relevo, talvez possas fazer alguma coisa. Aliás, boa parte deles tem abandonado país, não vislumbram por cá um futuro que os segure.
Vais ficar surpreendido com algumas figuras que conhecerás ao longo da tua estadia. Não te falo de ninguém, será mais interessante que vás conhecendo essas figuras e vamos falando. Muitas delas passam regularmente pelas televisões emitindo opiniões sobre tudo e mais alguma coisa sempre com um ar sério e convencidos da sua importância. 
Adoramos programas televisivos sobre futebol onde aparecem uns incendiários mandatados pelos grandes clubes que o estão a matar com ódio e hostilidade semeando ventos e, naturalmente, colhendo tempestades. 
No entanto, meu caro Ano Novo, se estiveres atento, vais perceber que somos um país de poetas que, como sabes, são uns fingidores. Por isso, deves ter reparado que à tua chegada encontraste o povo aos pulos em festas, com ar contente a olhar para o fogo-de-artifício, uma das nossas paixões, apesar da situação que te descrevi sinteticamente.
Renovo os votos de boas vindas e de bom trabalho. Se precisares de alguma coisa, estás à vontade, dispõe.
Um abraço deste velho que sempre espera que o Ano Novo venha melhor e seja Novo naquilo em que este foi velho.

Zé Morgado, 1 de Janeiro de 2018

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