AS MINHAS CONVERSAS POR AÍ

domingo, 29 de dezembro de 2013

QUANDO UM CÃO É GENTE

O comovente trabalho do Público sobre a relação entre algumas pessoas sem abrigo e os animais que lhes fazem companhia, isto é, lhes dão algum abrigo, levando alguns a recusar alojamento porque não aceitam separar-se dos seus amigos não pôde deixar de me recordar o meu Faísca e sem querer, longe disso, fazer qualquer abusiva comparação, a não ser no afecto que os bicho nos merecem e nos devolvem, partilho um texto que escrevi quando o meu Faísca partiu.
O meu Faísca foi dar um passeio muito grande, aquele passeio de onde não se volta. Alguns de vós, os que por aqui passam há mais tempo, conhecerão algumas das histórias com o Faísca. A estrada dele teve que ser abreviada para evitar mais males de sofrimento, não lhe perguntámos, não soubemos como, mas acho que a dignidade dele diria que sim.
O Faísca fazia parte da família, vivia aqui em casa há dezassete anos. Dizem que um ano na vida dos cães equivale a vários anos na vida das pessoas. Os dezassete do Faísca para nós parecem que foram o sempre, sempre aqui esteve. Também acho que os dezassete anos do Faísca serão o sempre, irá certamente aparecer nas conversas cá de dentro.
Era um companheiro dos bons, sempre atento nas conversas longas ou curtas que mantínhamos com ele. Mesmo quando nos últimos anos ficou completamente surdo, sentava-se olhava e compunha aquele ar que nos fazia sentir escutados. Quando algum de nós entrava em casa o seu ar de satisfação, aos pulos e de rabo a bater eram genuínos, nunca chegou a aprender com os humanos os fingimentos dos afectos. Quando fazia uns disparates sentava-se de lado a observar, sereno, sem grandes agitações, com ar de "foi sem querer" e de olhos a pedir desculpa.
Foi uma companhia sempre presente nos últimos anos do Avô Gila, com uma cumplicidade entre eles que só encontramos nos miúdos saudáveis e que às vezes nos fazia arreliar para rirmos logo a seguir, é natural, miúdos juntos, às vezes dá asneira.
É verdade, tenho de o reafirmar para me convencer, o Faísca partiu, provavelmente vai encontrar a Tita. A Tita era uma gata do campo que também já foi e com quem, desmentindo a tradição, o Faísca se enroscava na soleira da porta a apanhar o sol das tardes de inverno lá no Meu Alentejo, cena bonita de se ver.
Pois é companheiro, havemos ainda de nos encontrar, muitas vezes. Nas teias que a memória tece.

Como hoje.

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