Quando era miúdo ouvia com frequência a muitos adultos a expressão "ter mais olhos que barriga". Os mais velhos lembrar-se-ão de que este enunciado se destinava a chamar-nos a atenção para o excesso dos nossos pedidos ou desejos, ou seja, estávamos a querer demais para a nossa precisão ou capacidade de "arrumar" o solicitado e isto tanto se podia aplicar a brinquedos como a uns chocolates tentadores. Creio que a expressão era utilizada, por um lado para nos tentar educar numa perspectiva de equilíbrio e sem excessos e, por outro lado, porque o tempo não era mesmo de abundância, daí a parcimónia. Como é evidente nem sempre reagíamos bem aos avisos e sempre tentávamos chegar a algo mais que as possibilidades ou a generosidade e a paciência dos pais permitissem.
Hoje em dia, assiste-se com alguma frequência a uma atitude diferente, muitas vezes os miúdos ainda não "olharam", isto é, ainda não pediram, e os adultos apressam-se a "encher-lhes a barriga", ou seja, empanturram os miúdos com ofertas e bens que os intoxicam.
Em algumas circunstâncias este comportamento traduz uma atitude despreocupada de quem tem disponibilidades e entende que ter é bom, seja o que for e quanto mais e mais moderno melhor, próprio de quem também "tem mais olhos que barriga". Noutras circunstâncias, acontece que alguns pais, penalizados e com um sentimento de culpa advindo dos estilos de vida que lhes impede a relação desejada com os miúdos, tentam, de forma quase inconsciente, atenuar a inquietação com o excesso das ofertas, com a secreta e ingénua esperança de assim compensarem o que verdadeiramente não podem ou não sabem dar, tempo, por exemplo. Existe ainda um outro grupo que de forma mascarada de bem querer, pura e simplesmente "compra" os afectos dos miúdos com o excesso de bens que lhe oferecem.
Nos tempos que correm, por todas as razões e mais algumas, não será descabido recordar que talvez não precisemos de ter mais olhos que barriga ou, na versão do Velho Mário Sénico, "o que sobra não nos faz falta".
Concordo completamente.
ResponderEliminarMas talvez, mais do que comprar os miúdos, pergunto-me se não será também uma cultura de ostentação já muito enraizada? E até, de acreditar piamente, que é o melhor para os miúdos encher-lhes de brinquedos, mais um gelado, mais um chocolate antes do jantar transformado em hábito e porque não já agora deixar sistematicamente metade do mesmo no prato?
Mas vou-lhe confessar na tranquilidade do anonimato relativo que a internet providencia, uma confissão pessoal.
Eu não sou um pai que compra tudo e o mundo à sua filha. Não sou, felizmente, incrivelmente necessitado, mas nesta época em que vivemos, não é preciso o ser para saber que se tem que fazer contenções e evitar gastos desnecessários e não sou apologista de pedir um 2º, 3º, já agora 4º crédito para exibir um carro novo à porta enquanto se passa fome às portas fechadas. Talvez por isso não contribuo para a minha filha ter mais olhos do que barriga...ela sabe ouvir um "não...isso é um pouco caro" e responder-me com um sorriso compreensivo "está bem pai", sempre fui com ela às compras onde passo pela secção de brinquedos que ela gosta de ver sem problemas, e só aos 4 anos ela fez a sua primeira birra no centro comercial (finalmente! também tem o seu direito),e não foi por isso que levou algo que não podia ou tinha necessidade de ter. Sabe que um não é um não, e não um "talvez, depende dos decibéis do teu protesto". E não lhe falta nada...tem brinquedos que usa até à exaustão, faz mil e uma brincadeiras com as coisas mais simples, tem as guloseimas que por vezes tenta negociar um extra com (des)ajudas domésticas, e mais importante, tem tempo com o pai.
Mais do que qualquer traquitana de 3 euros que eu lhe possa trazer, nada a alegra mais do que a ir buscar mais cedo, ou poder ir assistir ao ballet (que a muito custo me convenceu a por...), ou dar os passeios diários, ou quando chove, o passeio faz-se de carro, onde ela me pergunta "coisas que sabes explicar" e ela com atenção me ouve a contar desde de como funcionam os planetas ao meu pessoal entendimento de politiquices...desde de que haja conversa o tema não importa. Desde de que depois o jantar seja com o pai, e não com cada familiar em sua divisão, com o seu tabuleiro, e desde de que depois ela possa estar no chão a brincar com o pai com os seus bonecos que vão todos comprar gelados antes do deitar...
E agora a confissão...eu sei que ela é feliz, eu noto que ela é feliz, e mesmo assim, eu sinto, que se tivesse todo o dinheiro do mundo, eu comprava-o no dia seguinte para lho dar. Para que, se vejo que ela é feliz com tudo o que tem e tudo o que lhe dou? O que poderia trazer a mais um chupa-chupa todos os dias acompanhado de um jogo, ou boneco, ou brinquedo que ela nem pediu? Então porque raio sinto que os compraria se não tivesse que olhar a despesas?
É daquelas coisas que imagino hipoteticamente. Talvez por isso a tente compensar com mais tempo. E atenção.
A sua filha é uma miúda com sorte pelo pai que tem que é um pai com sorte pela filha que tem. Parabéns aos dois.
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