AS MINHAS CONVERSAS POR AÍ

segunda-feira, 1 de junho de 2009

DIA 1 DE JUNHO - CARTA A VOCÊS

Às vezes dizem-nos para escrevermos cartas à família ou a pessoas que conhecemos. Eu vou escrever a vocês, não vos conheço, se calhar é melhor.
Chamo-me Bruno e tenho 15 anos e vou começar pela família. Eu já tive uma família, o meu pai, a minha mãe e dois irmãos pequenos, o Manel e a Sara. Não sei bem se podia chamar uma família porque o meu pai passava o tempo a bater na gente, sobretudo quando bebia. Eu que era mais velho apanhava mais, com um cinto, e não me deixava ir à escola. A minha mãe não dizia nada, tinha medo e tinha doenças. Um dia o meu pai morreu e eu, não se deve dizer, fiquei contente. Comecei a ir à escola outra vez mais os meus irmãos porque já tinham idade. Nessa altura também tive uma casa, não era grande, eu e os meus irmãos dormíamos num quarto pequeno e a minha mãe e o meu pai na cozinha. A cozinha quase não era precisa porque comíamos pouco, eram umas pessoas que levavam latas de conserva e coisas assim lá a casa ou uns vizinhos que também davam alguma coisa à gente. O meu pai, alguns dias trabalhava e às vezes, antes de beber, comprava um frango assado, isso sim, era comer.
A minha mãe arranjou outro marido que ainda nos batia mais que o meu pai, queria que eu e os meus irmãos andássemos a pedir e batia na gente se não arranjávamos dinheiro, muitos dias já não ia à escola outra vez e a minha mãe andava sempre doente. Não sei como é que foi, um dia apareceram lá umas pessoas bem vestidas com a polícia e levaram a gente para uma casa grande onde havia outros miúdos e comíamos bem. Ficámos ali uns tempos e depois levaram o Manel e a Sara, disseram-me que eles iam viver com uma família mas nunca mais soube nada deles. A mim, trouxeram-me para esta casa, chama-se Lar de Nossa Senhora do Depósito e já estou aqui há uns quatro anos. Vou à escola mas não gosto muito, ainda ando no 6º ano e meteram-me numa turma de miúdos pequenos que gozam comigo por ser mais velho e estar só no 6º. Às vezes passo-me e dou-lhes, depois sou castigado. Um dia fujo daqui. Gostava de aprender a fazer qualquer coisa, mas as pessoas aqui do Depósito não me ajudam a pensar no que hei-de aprender a fazer.
Acho que gostava de aprender a fazer uma casa e uma família. Sabem como é?
Dia 1 de Junho de 2009, Lar de Nossa Senhora do Depósito
Bruno

5 comentários:

  1. Tenho muitos Brunos crescidos ali no café da curva da minha rua.

    Passam ali o dia e passam muita coisa.

    Mas nem todos passam mal, felizmente.

    Abraço
    A.C.

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  2. Maria (nome fictício)é uma mãe de 21 anos que tem três filhos, entre os 5 anos e 1 ano de idade. Tem um marido agressivo, 15 anos mais velho, que a agride fisicamente com frequência.Vive num bairro social de Lisboa, os filhos frequentam o infantário da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa. Um dia, numa dessas tareias que o marido lhe dá, um vizinho chamou a polícia. O caso foi, assim, entregue ao tribunal. A equipa pseudo-multidisciplinar da Santa Casa , composta por directora de recursos humanos, assistente social, psicóloga, educadora e auxiliar de educação está dividida: uns são de opinião que as crianças devem ser retiradas à mãe e institucionalizadas, outra metade é de opinião que se deve trabalhar a mãe, levá-la para um abrigo com os filhos, e reinseri-la no mercado de trabalho, ou seja, dar-lhe a cana para a ensinar a pescar, até porque ela reune capacidades.Isto porque retirar o pai de casa é algo ainda utópico neste país. A avaliação foi feita numa ( uma unica) visita a casa das crianças, feita pela assistente social, para ver se a casa tem condições, leia-se arrumação e limpeza. É com base nessa visita e num relatório da psicóloga que deveria acompanhar as crianças mas que tem mais umas dezenas para acompanhar, logo, não tem como fazer o devido acompanhamento, que o tribunal vai decidir se institucionaliza estas crianças ou não. Não é a mãe que as agride. As educadoras e auxiliares que acompanham as crianças, que conhecem mais de perto a familia ( mãe e pai) através do contacto diário, não somos sequer ouvidas em tribunal. Estas crianças estão prestes a tornarem-se Brunos, sem necessidade. Ceifam-se esperanças, rumos de vidas com estas decisões tomadas por um sistema despreparado e ignorante quanto às necessidades reais destes miudos.

    Paula Sousa

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  3. Paula,
    E realidade terá de ser sempre assim?

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  4. Em geral, é assim que se procede à avaliação e é este o sistema que temos.
    Não há uma verdadeira política de protecção de menores, embora hajam pessoas empenhadas e que dão muito de si. A institucionalização das crianças deveria ser o último dos recursos.

    Paula

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  5. Fico muito triste com este tipo de historias, quantos milhões de "brunos" existem por este nosso mundo fora? As pseudo-istituições governamentias com o pretexto de que: "existem muitos mais casos à espera e não podemos perder muito tempo na analise deste", preferem varrer o problema para debaixo do tapete onde temporariamente não se vai ver e até parece, para quem vê de fora, que foi salva mais uma criança com a institucionalização. São muitas vezes decisões cobardes de quem não quer ferir susceptibilidades de alguns senhores todo poderosos, para os quais algumas decisões politicas menos populares podem custar votos nas proximas eleições. Vivemos numa sociedade de "labregos", reinada pelo cinismo, onde a maioria de nós sente muita pena, "coitadinhas das crianças", mas 5 minutos depois viramos as costas e fingimos que nada aconteceu. Terá de ser assim? Não estaremos todos a contribuir para o aumento do numero de vidas vazias, esperanças perdidas, fugas para a delinquencia e criminalidade, é que quando a nossa vida não tem valor, muito menos terá a dos outros que nos rodeiam, que ainda por cima têm tudo aquilo que a eles não me é permitido ter. Neste aspecto considero que todos na sociedade somos culpados pela nossa inacção. Não é um problema nosso, como nenhum é até que nos bate â porta.

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