AS MINHAS CONVERSAS POR AÍ

sexta-feira, 1 de março de 2024

DE TANTO RASPAR, UM DIA VOU ENRICAR

 De acordo com o Público a venda de jogos da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa atingiu 3136 milhões de euros em 2023, mais 72 milhões do que em 2022.  Dito de outra forma, verificou-se um volume de aposta diárias de quase 8,6 milhões por dia nos jogos da Santa Casa em 2023. A “raspadinha” é o jogo com maior volume de apostas.

É obra. Se considerarmos que ainda se verifica um volume significativo de gastos noutras formas de jogo, online sobretudo, percebe-se o impacto significativo que terá nos orçamentos familiares.

Recordo que em 2023 foi divulgado um estudo desencadeado pelo Conselho Económico e Social sobre a utilização da vulgar “raspadinha” realizado com a colaboração de Pedro Morgado e Luís Aguiar-Conraria da Universidade do Minho.

A raspadinha continua a ser o jogo mais popular e de estudos anteriores já se conhecia que perto de 80% dos jogadores pertence às classes mais desfavorecidas, D e E, 61% jogam regular ou frequentemente e 37.5% dos apostadores estão acima dos 55 anos.

Do estudo do CES infere-se que cerca de 100 mil pessoas em Portugal podem apresentar problemas de jogo com as “raspadinhas”, 1,21% da população. Deste universo 30000 cidadãos terão “quase de certeza doença instalada, ou seja, “perturbação de jogo patológico”, de acordo com Pedro Morgado.

No que respeita ao perfil dos “utilizadores”, um cidadão com rendimento até 664 euros têm três vezes mais probabilidade de jogar frequentemente que um cidadão com rendimento superior a 1500 €. Um cidadão com o ensino básico terá quase seis vezes mais probabilidades que de ser um jogador frequente que alguém com mestrado ou doutoramento.

Uma outra variável importante e estudada é a idade. Os cidadãos com 66 ou mais revelam o dobro da probabilidade de serem jogadores frequentes de "raspadinha", se comparados com a franja populacional entre os 18 e os 36.

Os dados são relevantes, mas não surpreendem, recordo um outro trabalho desenvolvido por Pedro Morgado (um dos responsáveis do estudo CES) e Daniela Vilaverde da Escola de Medicina da Universidade do Minho, divulgado em 2020 na The Lancet Psychiatry que mostra como a relação de muitos apostadores portugueses com a vulgar “Raspadinha” tem vindo configurar um comportamento aditivo, indutor de sofrimento e mal-estar social e familiar. Dados de 2018 já mostravam mostram que os gastos nestas apostas foram de 1594 milhões de euros, 160€ por ano em média por apostador o que é superior ao que se verifica em muitos países, 14€ em Espanha, por exemplo.

A verdade é que para além do caso particular da Raspadinha tem aumentado de forma geral o investimento dos portugueses nos “jogos sociais” da Santa Casa e nas apostas online. De facto, o Totobola e depois o Euromilhões, o Totoloto, posteriormente a Raspadinha, fortemente apelativa pela possibilidade de retorno imediato e grande acessibilidade, e mais recentemente as apostas online estabeleceram-se firmemente na vida de muitos de nós e criaram mesmo uma imagem criadora de futuro que nos move. Provavelmente e para muitas pessoas, será a única imagem criadora de futuro.

Importa reconhecer que as imagens criadoras de futuro são imprescindíveis, tanto mais quando atravessamos tempos duros em que a esperança também tem sido revista em baixa e dificilmente vislumbramos a recuperação.

Creio que esta perspectiva é parte importante desta equação e apesar de sabermos que a decisão de apostar é sempre de natureza individual, o contexto em que muita gente vive, os estilos de vida e quadro de valores são variáveis que também devem ser consideradas, como, aliás, o estudo sublinha.

Por outro lado e em termos culturais, também encontramos algumas pistas para entendimento. Julgo poder afirmar-se que em muitos lares portugueses e em muitas conversas e talvez mais do que nunca, uma das frases mais ouvidas é “nunca mais me sai o Euromilhões, (ou a raspadinha) para deixar de trabalhar”. Muito provavelmente, cada um de nós já ouviu, pensou ou disse esta expressão alguma vez ou vezes e que não será usada apenas pelos cidadãos com maiores dificuldades.

Acho curiosa a sua utilização. Entendo, naturalmente, a ideia subjacente à primeira parte. Um prémio de valor substantivo representaria, seguramente, a hipótese de acesso a um patamar superior de bem-estar económico, desejado, naturalmente, por toda a gente. O que de facto me parece mais interessante é o complemento “para deixar de trabalhar”. É certo que nem todas as expressões devem ser entendidas no seu valor “facial”, mas é também verdade que a recorrente afirmação deste desejo acaba por ilustrar a relação que muitos de nós estabelecemos com o lado profissional da nossa vida, isto é, “quero livrar-me dele o mais depressa possível”. Não será grave, mas é um indicador que possibilita várias leituras.

Neste contexto e cultura sabem qual é a minha inquietação para além dos riscos associados a comportamentos aditivos? É se os miúdos, considerando a agitação que vai pelo seu mundo “laboral” e os discursos dos adultos, desatam a pedir, se puderem, um aumento de mesada que lhes permita jogar nas “raspadinhas” ou apostar no Euromilhões para … deixar de ir à escola.

Já estivemos mais longe. Talvez, também por questões desta natureza, a abordagem deste tipo de questões nos contextos educativos num quadro desenvolvimento e cidadania faça sentido sem que daqui resulte, evidentemente, mais uma disciplina ou mais um projecto.

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