AS MINHAS CONVERSAS POR AÍ

sábado, 30 de novembro de 2024

SÓ APRENDE QUEM SE RI

 São preocupantes os dados sobre as circunstâncias sociais e económicas em que vivem muitas, demasiadas, crianças em Portugal. Apesar de frequentemente aqui abordar estas questões, é preciso insistir.

Num relatório da Direcção-Geral de Estatísticas da Educação e da Ciência, “Assimetrias entre Escolas: Ensinos Básico e Secundário, 2022/23”, agora divulgado, evidenciam-se assimetrias muito significativas entre escolas no que se refere ao contexto de vida dos alunos. A situação é mais grave no 1.º ciclo, mas verifica-se em todos os ciclos, bem como no secundário e no ensino profissional.

Sem surpresa os maiores contrastes verificam-se nas regiões de Lisboa e Porto. Relativamente a Lisboa, considerando 82 escolas de 1.º ciclo analisadas, em metade existem mais de 50% de alunos que beneficiam da Acção Social Escolar e em pelo menos cinco o número é superior a 80%.

Considerando a escolaridade das mães, variável utilizada em estudos desta natureza, 85% das mães de alunos com ASE não têm o ensino secundário face a 3% de mães de alunos sem apoios sociais

No Porto a situação é da mesma natureza, a percentagem de alunos do 1.º ciclo com apoio da ASE varia entre 77% e 7% e das 46 escolas analisadas, em 37% metade ou mais dos alunos beneficia da ASE sendo que seis destas escolas têm taxas superiores a 70%.

É na verdade preocupante, precisamos de insistir e repito o que há pouco aqui escrevi.

Há pouco tempo diversas organizações da sociedade civil divulgaram e chamaram a atenção para o aumento do risco de pobreza entre as crianças portuguesas requerendo a atenção das políticas públicas sectoriais. De acordo com os dados mais recentes do INE referentes a 2023 verifica-se "um aumento da taxa de pobreza infantil com 347 mil crianças em risco de pobreza monetária". "São mais 44 mil do que no ano anterior", de referem os subscritores desta iniciativa.

É ainda de registar que a "taxa de risco de pobreza infantil em 2023 foi de 20,7%", correspondendo a um regresso aos valores de 2017, o que coloca as crianças como o "grupo etário que regista a maior taxa de risco de pobreza e também aquele em que se observa uma evolução mais desfavorável deste indicador",

Parece, assim, que estamos longe de conseguir minimizar os riscos de pobreza e exclusão importa insistir e apelar a que estas matérias constituam preocupações sérias das políticas públicas em diversas áreas.

Sabemos que a educação tem um papel crítico neste processo. Retomando notas que aqui recentemente deixei, recupero o relatório, “Portugal, Balanço Social 2023”, realizado pela Nova SBE Economics for Policy. De acordo com o trabalho, 82% das crianças pobres com três anos ou menos não frequentam pelo menos 30h de creche. Também no intervalo entre 4 e 7 anos são também as crianças mais pobres que não frequentam educação pré-escolar.

Apesar da gratuitidade da frequência da creche em 2022, a insuficiência de vagas dificulta o acesso das famílias de menor rendimento apesar de alguns efeitos decorrentes do Programa Creche Feliz.

Está bem estudada a relação entre a situação económica, laboral e nível de literacia familiar no trajecto pessoal. E também sabemos que situações de "guetização da pobreza" são um obstáculo à sua minimização.

Também sabemos que a pobreza tem claramente uma dimensão estrutural e intergeracional, as crianças de famílias pobres demorarão até cinco gerações a aceder a rendimentos médios, um indicador acima da média europeia.

A escola é certamente uma ferramenta poderosa de promoção de mobilidade social, mas, por si só, dificilmente funciona como elevador social. Muito menos o fará em circunstâncias em que a maioria vive em piores condições.

O impacto das circunstâncias de vida no bem-estar das crianças e em aspectos mais particulares como o rendimento escolar ou o comportamento é por demais conhecido e essas circunstâncias constituem, aliás, um dos mais potentes preditores de insucesso e abandono quando são particularmente negativas, como é o caso de carências significativas ao nível das necessidades básicas.

Algumas vezes, quando penso nestas matérias não resisto a recuperar uma história que conto muitas vezes, coisas de velho como sabem, e que foi umas das maiores e mais bonitas lições sobre educação que já recebi. E mais uma vez.

Aconteceu há já uns anos em Inhambane, Moçambique, também conhecida por Terra da Boa Gente. Num início de manhã, eu o Velho Carlos Bata, um homem velho e sem cursos, meu anjo da guarda durante as semanas que lá estive em trabalho, íamos a passar por uma escola para gaiatos pequenos e o Velho Bata, parou a olhar. Não estranhei, era um homem que não conhecia o significado de pressa.

Um tempinho depois disse-me que se tivesse “poderes de mandar” traria um camião de batata-doce para aquela escola. Perante a minha estranheza, explicou que aqueles miúdos teriam de comer até se rir, “só aprende quem se ri”, rematou o Velho Bata.

Pois é Velho, miúdos com fome e que passam mal não aprendem e vão continuar pobres. E infelizes, não se riem.

Ontem, hoje e amanhã. Não podemos falhar.

sexta-feira, 29 de novembro de 2024

REGISTA-SE, MAS ...

 Registo, até pela raridade com que acontece, que o Ministro da Educação assumiu que os dados que divulgou sobre o cenário actual relativo ao número de alunos ainda sem professor a todas as disciplinas estavam errados e não correspondiam à realidade. Aguardam-se números mais fiáveis.

No entanto, a questão crítica mantém-se sendo também certo que não é de fácil e imediata resolução. Aliás, outros “donos” da pasta da educação bem que podiam seguir o exemplo de Fernando Alexandre assumindo o fracasso das políticas de que foram responsáveis e pedir desculpa pelos discursos com que nos continuam a tomar por gente sem memória.

Como escrevi há dias, em educação, mas não só, são frequentes os exercícios de “whisful thinking” ou de pensamento mágico. É também verdade que, por mais que a torturem a realidade, esta não se transforma na projecção dos desejos. As realidades descritas nem sempre são as realidades observadas. O que se passa no universo da chamada educação inclusiva é mais um bom exemplo de realidades múltiplas.

quinta-feira, 28 de novembro de 2024

A NET, UM MUNDO DE OPORTUNIDADES, UM MUNDO DE ALÇAPÕES

 Foi divulgado o estudo “Comportamentos Aditivos aos 18 anos” resultante do estudo realizado pelo Serviço de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e Dependências “Comportamentos Adictivos aos 18 anos – Inquérito aos jovens participantes no Dia da Defesa Nacional 2023”.

O inquérito envolve diferentes dimensões dos comportamentos de adição, mas  umas notas mais dirigidas à relação com os ecrãs.

Considerando a região de Lisboa 43,5% dos inquiridos começou a utilizar a net antes dos 10 anos sendo que mé dia nacional é de 41,7% e a maioria dos inquiridos começa entre 10 e 14 anos.

Quanto às actividades em que os jovens usam o tempo de ligação à net os dados evidenciam que é nas redes sociais, 43,1% gastam em média por dia duas a três horas, nos jogos de apostas, 63,9% utilizam-na em média uma hora por dia e em jogos, 45,6% referem uma hora do seu dia para jogar e 31,5% entre duas a três horas por dia.

Os dados devem ser reflectidos, mas do meu ponto de vista e apesar de conhecer riscos e comportamentos negativos, cyberbullying, por exemplo, julgo que devemos ter alguma serenidade e evitar discursos extremos.

Para as gerações mais novas não fica muito fácil imaginar um mundo sem a net. Quando por vezes converso com os meus alunos(as), já jovens e adultos, e lhes conto como era estudar sem net e sem computadores, as máquinas usadas eram as de escrever e de calcular, julgo que eles estarão, por assim dizer, a “ver” um filme de ficção científica ao contrário.

Como costumo afirmar, sou um utilizador conservador, sem conhecimento muito sólido, conto com o apoio de colegas e de gente mais nova como o meu filho, para as muitas dúvidas que vou sentindo. Aliás, já passei pela situação de não saber como realizar uma operação qualquer no telemóvel e o meu neto Simão, agora já com dez e um “nativo digital” como agora lhes chamam, me ter dito tranquilamente como proceder. A minha auto-estima aguentou-se sempre encostada ao meu perfil de utilizador, basicamente “ligo-me” para corresponder a alguma necessidade profissional, de conhecimento, de informação, de utilização de serviços, etc.

E não é raro que ainda me sinta “maravilhado” com as possibilidades abertas e que têm progredido enormemente, quer ao nível de equipamentos, de “software”, recursos, e que, certamente, ainda estaremos longe de esgotar como agora estamos a descobrir com a inteligência artificial.

A verdade é que se a net abriu um mundo inesgotável de oportunidades, também abriu um mundo de alçapões. Ligado desde sempre ao mundo dos mais novos, muitas vezes aqui tenho falado desses alçapões e como, apesar da vulgaridade e massificação da sua utilização, muitos pais me dizem desconhecê-los mesmo sendo eles próprios utilizadores regulares da net.

Em primeiro lugar sublinho que, como é evidente, não está em causa qualquer diabolização destas ferramentas, apenas um alerta para riscos e da necessidade de regulação da sua utilização pelos mais novos.

Como múltiplos estudos revelam aumentou exponencialmente o tempo que crianças, adolescentes e jovens, tal como muitos adultos, estão em frente do ecrã. Os confinamentos durante a pandemia fizeram subir exponencialmente esse tempo, a escola estava no ecrã. Naturalmente os riscos também aumentaram como o cyberbullying que já referi, chantagem e roubo, exposição a conteúdos inadequados às idades, pornografia infantil, etc.

Trata-se de mais um factor de pressão para a supervisão imprescindível, mas muito difícil dos mais novos na sua relação com a net.

 

É importante sublinhar que dados do Estudo Internacional de Alfabetização em Informática e Informação (ICILS) envolvendo 11 países e divulgados em 2020 sugerem que os alunos portugueses são os mais bem preparados para usar a internet de forma responsável. No entanto, os dados relativos aos riscos são, de facto, geradores de preocupação.

Recordo um trabalho da OCDE de 2018 "Curriculum Flexibility and Autonomy in Portugal – na OECD review” em que considerando dados de 2012 e 2015 (recolhidos no âmbito do PISA), oito em cada dez adolescentes portugueses afirmam "sentir-se mal" se não estiverem ligados à internet. Apenas os adolescentes franceses e suecos de entre os 31 países envolvidos evidenciam uma taxa superior.

Podemos considerar mais um sinal dos tempos as múltiplas referências ao tempo excessivo e dos riscos associados que que muitas crianças e adolescentes despendem com a ligação à net nas suas múltiplas possibilidades designadamente as redes sociais e os riscos associados. Os indicadores relativos ao cyberbullying, insisto e muitas vezes aqui tenho referido, são inquietantes.

Nesta perspectiva e tal como noutras áreas o recurso privilegiado a estratégias proibicionistas não funciona. É mais eficiente a promoção da utilização auto-regulada e informada. A net e o mundo de oportunidades, benefícios e riscos que está presente em todas as suas potencialidades é uma matéria que deve merecer a reflexão de todos os que lidam com crianças e jovens embora não lhes diga exclusivamente respeito. É o nosso trabalho.

Sabemos que muitas crianças têm um ecrã como companhia durante o pouco tempo que a escola "a tempo inteiro" e as mudanças e constrangimentos nos estilos de vida das famílias lhes deixam "livre". Também é verdade que a crescente "filiação" em redes sociais virtuais pode “disfarçar” o fechamento, juntando quem “sofre” do mesmo mal e o tempo remanescente para estar em família, frequentemente, ainda é passado à sombra de uma televisão.

Estas matérias, a presença das novas tecnologias na vida dos mais novos e os riscos potenciais, por estranho que pareça, são problemas menos conhecidos para muitos pais. Aliás, as dificuldades sentidas por muitas famílias na ajuda aos filhos em tempo de ensino não presencial, mostrou isso mesmo, baixos níveis de literacia digital. Considerando as implicações sérias na vida diária importa que se reflicta sobre a atenção e ajuda destinada aos pais para que a utilização imprescindível e útil seja regulada e protectora da qualidade de vida das crianças e adolescentes minimizando os riscos existentes nos “alçapões da net”. Existem demasiadas situações em que desde muito cedo os “smartphones” ou outros dispositivos funcionam como “babysitters”.

Por outro lado, a experiência mostra-me que muitos pais desejam e mostram necessidade de alguma ajuda ou orientação nestas matérias. Sabemos que estratégias proibicionistas tendem a perder eficácia com a idade.

Creio que o caminho terá de passar por autonomia, supervisão, diálogo e muita atenção aos sinais que crianças e adolescentes nos dão sobre o que se passa com elas.

quarta-feira, 27 de novembro de 2024

O CANTE, A ALMA DO ALENTEJO

 Os tempos vão muito duros, inquietam e preocupam face ao que virá. No entanto, até por uma questão de saúde mental e confiança importa que continuemos atentos ao que mais fora da nossa atenção.

Vi uma nota na imprensa recordando que há dez anos o Comité Intergovernamental da UNESCO para a Salvaguarda do Património Cultural Imaterial da Humanidade decidiu reconhecer o Cante Alentejano como património cultural imaterial da humanidade.

É verdade que a humanidade não tem sido particularmente cuidadosa com o seu património e consigo própria, mas deixou-me contente este reconhecimento da alma alentejana, o Cante.

Sendo o Alentejo uma paixão, o cante é também a banda sonora dessa paixão.

Como disse na altura, parece particularmente interessante para nós portugueses que duas formas de expressão vocal tão densas e expressivas como o Fado e o Cante Alentejano obtenham esta visibilidade.

Uma moda muito conhecida.



terça-feira, 26 de novembro de 2024

DA DELINQUÊNCIA JUVENIL

 No Público está uma entrevista interessante com Maria João Leote de Carvalho da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova sobre o universo preocupante da delinquência juvenil que está a aumentar no número de situações e na complexidade. Mais um sinal dos tempos que atravessamos.

A delinquência juvenil é, de facto, uma área complexa e e com uma insuficiente capacidade de resposta aos múltiplos episódios quer á sua prevenção.

Já em Maio, a Ministra da Justiça referiu na Assembleia da República a existência de lista de espera para o cumprimento de medidas de internamento em Centros Educativos existência de lista de espera para o cumprimento de medidas de internamento em Centros Educativos de jovens, com idades entre os 12 e os 16 anos, que cometeram actos que a lei qualifica como crimes. Considerando a idade ficam sujeitos à lei tutelar educativa com o objectivo de reeducação e inserção na comunidade. Para além da insuficiência dos equipamentos verifica-se uma significativa falta de recursos humanos, designadamente, técnicos de reinserção social. Entretanto, os jovens mantêm-se instituições de acolhimento ou nas famílias com o risco acrescido da reincidência.

Considerando Relatório Anual de Segurança Interna Relatório Anual de Segurança Interna (RASI) relativo a 2023, a violência entre grupos de jovens aumentou 14,6% em 2023, num total de 6 756 ocorrências, o valor mais elevado desde 2014. Também a delinquência juvenil, crimes praticados por jovens entre os 12 e os 16 anos, registou um crescimento de 8,7%, e 1 833 ocorrências, o valor mais alto desde 2017.

Parece clara a importância dos Centros Educativos e da urgência dos equipamentos e dos recursos humanos que lhes permitam cumprir a função.

Já durante 2023, num relatório da Comissão de Acompanhamento e Avaliação dos Centros Educativos é evidenciada a situação crítica dos centros desde problemas de instalações à escassez de técnicos de reinserção social, mal pagos e sem perspectivas de carreira. Acontece ainda que nem sempre as decisões dos tribunais são cumpridas.

Este cenário compromete de forma séria o cumprimento dos objectivos da Lei Tutelar Educativa que se podem traduzir na construção de um projecto de reinserção social bem-sucedido para cada um destes jovens.

Como já tenho escrito, a prevenção é, naturalmente, a questão crítica. Neste sentido, um sistema público de educação com qualidade, com recursos diversificados e competentes e autonomia das escolas, é a melhor ferramenta de promoção de igualdade de oportunidades, de equidade e de inclusão. É através de uma educação global que se minimiza o impacto de condições sociais, económicas e familiares mais vulneráveis e a emergência de comportamentos mais disruptivos por ausência de projecto de vida. Este continua a ser o nosso caderno de encargos.

Depois de iniciado um trajecto de delinquência importa que registar que em 2018, um relatório da Direcção de Serviços de Justiça Juvenil envolvendo os Centros Educativos e das equipas de Reinserção Social referia que decorridos dois anos do cumprimento de uma medida tutelar de internamento 31% dos jovens voltam a ser condenados. Se considerarmos a reincidência num período mais alargado a taxa é ainda maior apesar de alguma melhoria mais recente.

Uma das questões referidas como associadas a este valor prende-se com a necessidade de garantir a resposta adequada por parte dos Centros Educativos e do apoio e suporte após a saída da instituição. O relatório evidenciava como dificilmente estas necessidades são cumpridas e, provavelmente, assim continuará.

Múltiplos estudos sublinham a importância da prevenção e da integração comunitária como eixos centrais na resposta a este problema sério das sociedades actuais. As casas de autonomia, uma intenção conhecida em 2013 e na lei desde 2015, visam justamente apoiar este processo e saída dos centros e de promoção de uma reinserção social bem-sucedida. No entanto, apenas em 2019 e de forma pouco expressiva arrancou o processo de instalação das primeiras casas de autonomia.

Sabemos que a educação, prevenção e programas comunitários de reabilitação e integração têm custos, no entanto, importa ponderar entre o que custa prevenir e cuidar e os custos posteriores do mal-estar e da pré-delinquência ou da delinquência continuada e da insegurança. Será o que espera das políticas públicas nestas matérias.

Parece ser cada vez mais consensual que mobilizar quase que exclusivamente dispositivos de punição, designadamente o internamento enquanto menor e a prisão para os mais velhos, parece insuficiente para travar este problema e, sobretudo, inflectir as trajectórias de marginalização de muitos dos adolescentes e jovens envolvidos em episódios de delinquência.

No entanto, a discussão sobre estas matérias é inquinada por discursos e posições frequentemente de natureza demagógica e populista alimentados por narrativas sobre a insegurança e delinquência percebida, alimentadora de teses securitárias.

Apesar de, repito, a punição e a detenção constituírem um importante sinal de combate à sensação de impunidade instalada, é minha forte convicção de que só punir e prender não basta.

É em todo este caldo de cultura que em muitos contextos familiares vulneráveis nascem e se desenvolvem as sementes de mal-estar que geram os episódios que regularmente nos assustam e inquietam e com consequências sérias.

segunda-feira, 25 de novembro de 2024

A HISTÓRIA DE O TAL

 Agora na condição de reformado são frequentes as viagens às memórias profissionais. Em muitas conversas que realizei em escolas não era raro ouvir histórias como a de O Tal.

Era uma vez um rapaz, tinha 11 anos e chamava-se O Tal. Era o aluno de quem mais se falava na escola, por toda a gente. Cada professor achava que O Tal não aprendia o suficiente na sua disciplina, não tinha o comportamento adequado, não tinha motivação para aprender, não estudava, não gostava de escrever, não gostava de ler, não se interessava pela generalidade dos assuntos abordados nas aulas, não sabia participar numa conversa, não completava uma actividade, não era organizado, não gostava de ser contrariado, não cumpria a generalidade das tarefas, etc.

Um dia, um dos professores que tinha O Tal, falou nele ao Professor Velho, o que estava na biblioteca e falava com os livros. O Professor Velho, depois de ouvir afirmou que não conhecia O Tal. A resposta surpreendeu o professor. “Como não conheces O Tal? É o aluno mais conhecido da escola!”.

Disse o Velho naquele jeito baixinho, “Sim, eu sei quem é O Tal, mas acho que O Tal é o aluno mais desconhecido da escola. Repara, só conhecem o que ele não sabe, o que ele não faz, o que não gosta, o que ele não é. Não saberão, portanto, o que ele é, o que ele será capaz de fazer, o que ele saberá, de que gostará. Olha que a gente só aprende a partir do que sabe e só cresce a partir do que já é. Era melhor conhecer O Tal. Só conhecendo O Tal e as suas circunstâncias o podemos “agarrar””.

Sempre assim será com "Os Tais”.

domingo, 24 de novembro de 2024

ALGUNS BRINQUEDOS SÃO PERIGOSOS, A NEGLIGÊNCIA TAMBÉM

 Como por aqui se diz, está um dia cabaneiro, com uma ventania que convida a estar em casa. Dado que não é dia de escola os mais novos podem ter um tempinho para brincar. Por coincidência, mas sem surpresa, é habitual quendo se aproxima a época natalícia, no DN está uma peça a alertar para o perigo que alguns brinquedos podem representar para as crianças.

Nos primeiros quatro meses deste ano, a ASAE – Autoridade da Segurança Alimentar e Económica apreendeu 682 brinquedos inseguros e de “potencial risco”. É ainda de referir que relatórios do Instituto da Propriedade Intelectual da União Europeia mostram que os brinquedos são dos produtos mais contrafeitos.

Na verdade, existem riscos em alguns brinquedos tal como a Associação para a Promoção da Segurança Infantil e a DECO já têm referido alertando para o facto de que tal estar no brinquedo o símbolo CE não é suficiente como garantia de segurança. A DECO tem também alertado para o risco da compra de brinquedos através da net.

Neste cenário, tanto como o trabalho das instituições de regulação, importa sublinhar o papel dos pais como os "verdadeiros inspectores" da segurança dos brinquedos. No entanto, parece-me, como sempre, necessário usar de algum bom senso e evitar excessos de zelo que também não são positivos, ainda que em matéria de segurança infantil o excesso seja melhor que o defeito.

Esta referência à segurança nos brinquedos é importante e oportuna, estamos à beira do espírito natalício, o tempo dos brinquedos, mas gostava de reforçar o facto de continuarmos a ser um dos países da Europa com taxa elevada de acidentes domésticos envolvendo crianças, de que as quedas de janelas ou varandas, os afogamentos ou o contacto com materiais perigosos não devidamente acondicionados, são apenas exemplos tragicamente frequentes.

O que me parece importante registar é que num tempo em que os discursos e as práticas sobre a protecção da criança estão sempre presentes e muitas vezes e em múltiplos aspectos com comportamentos de excessiva protecção, em que é recorrente a referência aos perigos dos brinquedos, também se verifica um número altíssimo de acidentes o que parece paradoxal. Acrescentaria a necessidade de uma maior regulação na utilização dos ecrãs que em excesso tem riscos de natureza diversa.

Por um lado, protegemos as crianças de forma que, do meu ponto de vista, me parece excessiva face às suas necessidades de autonomia e desenvolvimento e, por outro lado e em muitas circunstâncias, adoptamos atitudes e comportamentos altamente negligentes e facilitadores de acidentes que, frequentemente, têm consequências trágicas.

E não vale a pena pensar que só acontece aos outros.

sábado, 23 de novembro de 2024

AS CONTAS QUE NUNCA DÃO CERTO

 O Ministro da Educação MECI anunciou que em 20 de Novembro existiam 2338 alunos sem professor desde o início o ano a uma disciplina pelo que cumpriu o objectivo de diminuir em 90% o número verificado na mesma altura no ano passado.

Umas notas curtinhas. Estando em final de Novembro e tendo alunos sem aulas a pelo menos uma disciplina parece-me estranho falar de objectivo cumprido. Sim, sei que não se faz milagres, mas também entendo que precisamos de seriedade, ainda que seja uma só turma sem professor é um problema.

Em educação, mas não só, são frequentes os exercícios de “whisful thinking” ou de pensamento mágico. É também verdade que por mais que a torturem a realidade, esta não se transforma na projecção dos desejos. As realidades descritas nem sempre são as realidades observadas.

Por outro lado, é curioso que numa área como a educação, quando se referem números e se apresentam contas, estas nunca dão certas. Parece existir um problema sério de iliteracia ou, de uma forma mais popular e real, manhosice. 

Uma última nota. As políticas públicas exigem opções, os recursos são finitos, mas com regulação e competência, sem desperdício, também sabemos que, simplificando, em educação não há despesa, há investimento.

sexta-feira, 22 de novembro de 2024

POBREZA E EDUCAÇÃO. É PRECISO INSISTIR

 Leio no Público que diversas organizações da sociedade civil divulgaram e chama a atenção para o aumento do risco de pobreza entre as crianças portuguesas requerendo a atenção das políticas públicas sectoriais. De acordo com os dados mais recentes do INE referentes a 2023 revelam "um aumento da taxa de pobreza infantil com 347 mil crianças em risco de pobreza monetária". "São mais 44 mil do que no ano anterior", de referem os subscritores desta iniciativa.

É ainda de registar que a "taxa de risco de pobreza infantil em 2023 foi de 20,7%", correspondendo a um regresso aos valores de 2017, o que coloca as crianças como o "grupo etário que regista a maior taxa de risco de pobreza e também aquele em que se observa uma evolução mais desfavorável deste indicador",

Refere-se também que um estudo realizado pela EPIS – Empresários para a Inclusão Social revela que 20 em cada 100 alunos provenientes de famílias desfavorecidas reprovam de ano durante o 2.º e 3.º ciclos do ensino básico.

Também no acesso e frequência do ensino superior se repercute fortemente as circunstâncias socio-económicas familiares

Ainda uma referência a dados do Eurostat que aqui abordei em Junho. Em Portugal, no final de 2023 viviam 339 mil crianças em risco de pobreza ou de exclusão social, cerca de 22,6% da população com menos de 18 anos. Relativamente a 2022 verifica-se um aumento de 1,9%. Se considerarmos a primeira infância, até aos 6 anos, a taxa de risco é de 21,6%, um aumento de 4%, mais 25 mil crianças.

Parece, assim, que estamos longe de conseguir minimizar os riscos de pobreza e exclusão importa insistir e apelar a que estas matérias constituam preocupações sérias das políticas públicas em diversas áreas.

Sabemos que a educação tem um papel crítico neste processo. Retomando notas que aqui recentemente deixei, recupero o relatório, “Portugal, Balanço Social 2023”, realizado pela Nova SBE Economics for Policy. De acordo com o trabalho, 82% das crianças pobres com três anos ou menos não frequentam pelo menos 30h de creche. Também no intervalo entre 4 e 7 anos são também as crianças mais pobres que não frequentam educação pré-escolar.

Apesar da gratuitidade da frequência da creche em 2022, a insuficiência de vagas dificulta o acesso das famílias de menor rendimento apesar de alguns efeitos decorrentes do Programa Creche Feliz.

Está bem estudada a relação entre a situação económica, laboral e nível de literacia familiar no trajecto pessoal.

Também sabemos que a pobreza tem claramente uma dimensão estrutural e intergeracional, as crianças de famílias pobres demorarão até cinco gerações a aceder a rendimentos médios, um indicador acima da média europeia.

A escola é certamente uma ferramenta poderosa de promoção de mobilidade social, mas, por si só, dificilmente funciona como elevador social.

O impacto das circunstâncias de vida no bem-estar das crianças e em aspectos mais particulares como o rendimento escolar ou o comportamento é por demais conhecido e essas circunstâncias constituem, aliás, um dos mais potentes preditores de insucesso e abandono quando são particularmente negativas, como é o caso de carências significativas ao nível das necessidades básicas.

Não podemos falhar.

quinta-feira, 21 de novembro de 2024

FAMÍLIA, UM BEM DE PRIMEIRA NECESSIDADE

 Lê-se no blico que o Governo divulgou uma campanha que terá como objectivo “sensibilizar para a necessidade de termos mais famílias de acolhimento e não só sensibilizar, mas também informar", de acordo com a secretária de Estado da Acção Social e da Inclusão.

Retomo o que aqui escrevi há pouco tempo a propósito da divulgação do Relatório CASA 2023 (Relatório de Caracterização Anual da Situação de Acolhimento dasCrianças e Jovens) pelo Instituto da Segurança Social. Vejamos alguns dados. Em termos globais aumentou o número de crianças e jovens em situação de acolhimento.

Em 2023 registaram-se 2415 casos de novo acolhimento o que significa mais 8% que em 2022. Destes novos casos, 80% já estavam em acompanhamento, mas a identificação de situações de perigo sustentou processos de retirada urgente, situação que está a aumentar.

Em termos globais, das 6446 crianças em situação de acolhimento estavam 263 em família de acolhimento, 4,1% das 6446 crianças com medida de acolhimento. Assim, perto de 96% estava em regime institucional, 5738 em cuidados formais residenciais, como casas de acolhimento, e 445 noutras formas de cuidados alternativos, como centros de apoio à vida, lares residenciais ou colégios de educação especial.

É um quadro que continua a ser preocupante e alimenta o que o relatório "Caminhos para uma melhor protecção: Balanço da situação das crianças em estruturas de acolhimento na Europa e na Ásia Central" realizado pela Unicef divulgado em Janeiro mostrava, segundo qual, entre 42 países da Europa e da Ásia Central, Portugal o país com mais crianças a viverem em instituições.

Mantém-se a acrescida dificuldade de processos de adopção de crianças mais velhas, mais vulneráveis por alguma condição de saúde, crianças com necessidades especiais ou adolescentes e jovens.

É consensual que em nome do bem-estar das crianças e jovens seria desejável que se conseguisse até ao limite promover a desinstitucionalização das crianças por múltiplas e bem diversificadas razões.

Recordo um estudo de Paulo Delgado do Instituto Politécnico do Porto, creio que divulgado em 2018, refere que as crianças evidenciam uma percepção de bem-estar significativamente diferente consoante estejam em família tradicional, 9.05 numa escala de 0 a 10, em famílias de acolhimento, 8.69 e em instituições, 7.61.

Também há algum tempo um trabalho da Universidade do Minho evidenciou que as crianças institucionalizadas revelam, sem surpresa, mais dificuldade em estabelecer laços afectivos sólidos com os seus cuidadores nas instituições. Esta dificuldade pode implicar alguns riscos no desenvolvimento dos miúdos e no seu comportamento.

A conclusão não questiona, evidentemente, a competência dos técnicos cuidadores das instituições, mas as próprias condições de vida institucional e aponta no sentido da adopção ou outros dispositivos como forma de minimizar estes riscos e facilitar os importantes processos de vinculação afectiva dos miúdos. Também deve acentuar-se o trabalho de grande qualidade que muitas instituições procuram desenvolver. Além disso, sabemos todos, que existem contextos familiares que por razões de ordem variada não devem ter crianças no seu seio, fazem-lhes mal, pelo que a retirada pode ser uma necessidade que o superior interesse da criança justifica sendo um princípio estruturante das decisões neste universo.

Uma família é, de facto, um bem de primeira necessidade.

quarta-feira, 20 de novembro de 2024

DO DIA UNIVERSAL DOS DIREITOS DA CRIANÇA

 Só para relembrar. O calendário das consciências determina que no dia 20 de Novembro se assinale o Dia Universal dos Direitos da Criança assente numa dupla comemoração, a proclamação da Declaração dos Direitos da Criança (1959) e adopção da Convenção sobre os Direitos da Criança (1989) pela Assembleia Geral das Nações Unidas.

É verdade que nestes 65 anos, pensando sobretudo na realidade portuguesa, muito evoluímos também no que respeita ao universo dos mais novos. No entanto, os Direitos da Criança continuam uma agenda por cumprir em múltiplas dimensões e por muitas e diferentes razões.

Os ventos malinos que sopram e o enorme conjunto de dificuldades que atravessamos apesar de algumas melhorias, ancorados num quadro de valores que tende a proteger mercados e interesses outros que conflituam com os interesses e bem-estar da maioria das pessoas vão criando exclusão, pobreza e negação de direitos. Aliás, é frequente o entendimento de que os direitos devem ser entendidos como sendo de geometria variável, ou seja, dependem da conjuntura económica pelo que os que menos têm também terão os seus direitos diminuídos. Por outro lado, os ventos que sopram politicamente por boa parte do mundo não auguram melhor e maior atenção aos mais desprotegidos.

Neste cenário, conforme os estudos e a experiência mostram, os mais novos constituem um grupo especialmente vulnerável. Aliás, recordo uma expressão de Laborinho Lúcio considerando que entre nós e em muitas circunstâncias, os direitos dos menores também parecem direitos menores.

Nesta vulnerabilidade existem três áreas em que me parece que os direitos estão particularmente ameaçados, as crianças e adolescentes em risco de maus tratos, abusos e negligência, a pobreza infantil e o direito à equidade nas oportunidades de acesso à educação de qualidade para todas as crianças, sublinho, todas as crianças.

De uma forma geral, os discursos e a retórica política sempre acentuam a importância destas matérias, mas é preciso ir um pouco mais longe. Por exemplo, dotar as Comissões de Protecção de Crianças e Jovens dos meios suficientes e qualificados para a detecção e acompanhamento eficaz dos casos de risco, ou caminhar no sentido de diminuir o número de crianças institucionalizadas e sem projecto de vida.

No que respeita ao risco de pobreza, as crianças são sempre o elo mais fraco de uma sociedade com um fosso demasiado grande entre os mais ricos e os mais pobres. As políticas sociais não podem deixar de entender como prioritário, sobretudo nos tempos que atravessamos, os apoios sérios e fiscalizados aos problemas das famílias que envolvem, necessariamente, os mais novos. É o seu futuro que está em causa.

No que respeita à educação, a equidade e o objectivo de que todos atinjam o patamar possível de sucesso educativo e qualificação é o grande desafio. Os discursos políticos nunca esquecem o grande desígnio da educação ou a paixão pela educação. Os preâmbulos dos normativos são excelentes peças de retórica sobre direitos e qualidade.

No entanto, precisamos mesmo de caminhar de forma séria e não tentados pela sedução do sucesso estatístico, para a qualidade dos processos educativos que se traduza nos níveis de qualificação das pessoas (não da simples certificação), na diminuição das taxas de abandono e insucesso, enfim, na construção de projectos de vida viáveis e bem-sucedidos. Muitas crianças e adolescentes com necessidades especiais vêem atropelados os seus direitos a dimensões básicas da qualidade de vida, a educação, por exemplo.

A escassez de recurso de diferente natureza que permitam apoios suficientes, competentes e em tempo útil são constrangimentos grandes que ameaçam os direitos de crianças e adolescentes.

Torna-se imperativo promover a participação e fazer ouvir, escutando, a voz dos mais novos. Continuamos com uma agenda por cumprir no que respeita ao seu bem-estar

terça-feira, 19 de novembro de 2024

QUANDO A IMPRENSA É NOTÍCIA

 De vez em quando a imprensa é ela própria o objecto da notícia. A Trust in News, empresa que detém órgãos de comunicação social como a Visão, Caras, Ativa, o Jornal de Letras Artes e Ideias e a revista História atravessa uma grave situação económica de que, aparentemente, dificilmente recuperará.

É um lugar-comum, mas uma imprensa de qualidade é um dos alicerces da democracia e nunca como hoje se tornou tão necessária.

É recorrente, não só em Portugal, a discussão da questão da sobrevivência da imprensa e, naturalmente, da sua independência face aos poderes, político e económico, designadamente. Sabemos das tentativas recorrentes de controlo político da imprensa, como também sabemos da eventual agenda implícita dos investimentos dos grupos e poderes económicos na imprensa. São vários os exemplos recentes. Sabemos que a sustentabilidade económica da imprensa é condição necessária, mas não suficiente para a sua independência e por isso os tempos são difíceis.

Por outro lado, a evolução do próprio mundo da imprensa, a evolução exponencial do universo do on-line, a conjuntura económica inibidora de gastos das famílias em bens “não essenciais” e, caso particular de Portugal, o baixo nível de hábitos de leitura e consumo da imprensa escrita, produzem dificuldades de sobrevivência de títulos de qualidade, chamados de referência, abrindo caminho à chamada imprensa tablóide que, apesar das oscilações, se mantém relativamente saudável, o que se entende. São também tablóides os tempos. A esta realidade soma-se a explosão das redes sociais e o consumo de “notícias” através destes suportes diluídas em manipulação e desinformação potenciadas pela IA. Acresce ainda a eventual falha dos modelos de gestão das empresas detentoras.

Como leitor de jornais ou revistas desde muito novo, é sempre com inquietação e tristeza que penso nestas questões e vou assistindo ao abaixamento das tiragens e, finalmente, ao desaparecimento.

Numa entrevista ao Público há já algum tempo, um especialista, Tom Rosenstiel, afirmava que se o jornalismo deixar de ser rentável e, como tal, correr o risco de desaparecimento, as democracias poderão sofrer um "cataclismo cívico". Creio que a cidadania de qualidade exige uma imprensa não só voltada para o imediatismo da espuma dos dias e acredito que apesar das mudanças em tecnologia e das incidências do mercado a que os jornalistas, a imprensa saberá adaptar-se. Quero acreditar que a imprensa, jornais ou rádio com qualidade, são como os dias, nunca acabam. Se forem jornais ou revistas, bons jornais, boas revistas, independentemente do suporte têm de resistir.

No entanto, parecem-me inquietante os potenciais efeitos que a precariedade e a fragilidade da situação profissional de muitos jornalistas possam tornar a sua função ainda mais vulnerável, trata-se da sobrevivência, às questões da qualidade e, como é referido, a constrangimentos em matéria de ética e deontologia.

No mesmo sentido, a fragilidade do jornalista enquanto profissional é também favorável à existência de pressões de várias origens e com impacto potencial inquietante no papel que se espera que a imprensa cumpra em sociedades abertas e democráticas.

Talvez, estes dados nos ajudem a perceber aquilo que para quem acompanhe diariamente a imprensa portuguesa se torna razoavelmente claro, a existência de agendas e critérios editoriais, uns mais explícitos, outros mais dissimulados, mas evidentes, que constroem narrativas em que o jornalista mal pago, com um lugar precário e pressionado é apenas um peão executivo.

Não é de agora, mas este quadro agrava a natureza da relação dos poderes, designadamente do poder político, com a comunicação social que tem algumas particularidades interessantes.

Se estivermos atentos, reparamos como todos se procuram servir da comunicação social para a defesa dos seus interesses pessoais, partidários, institucionais, económicos, etc. Nada de novo, sabemos o peso que a comunicação social tem nas sociedades actuais e nos últimos tempos também temos tido sucessivos episódios ilustrativos dessas nebulosas relações.

Nesta matéria, para além das consequências óbvias destes comportamentos, parece-me particularmente irritante a forma quase infantil, está um pouco na moda este tipo de infeliz comparação, mas não resisto, como algumas figuras reagem ao ser abordadas pela imprensa sobre assuntos sobre os quais, por várias razões, não lhes interessa discorrer. Surgem então as afirmações patéticas, “não tenho nada a acrescentar”, “desculpem, não comento”, “não estou aqui para falar dessas matérias,” “no estrangeiro não comento questões nacionais”, etc., etc. Este pessoal desenvolve assim uma espécie de surdez selectiva, só ouve o que lhe convém, de mutismo selectivo, só fala do que lhe convém, de cognição selectiva, só conhece o que lhe convém.

No entanto, são também estas as figuras que directamente ou através de terceiros, lambem as botas às redacções e aos jornalistas (quanto mais influentes melhor) e pedem, exigem, tempo de antena quando tal serve os seus diferentes interesses. Por outro lado, é também patético e preocupante assistir ao trânsito entre redacções e lugares de assessoria e em gabinetes políticos numa promiscuidade que mina a solidez ética da classe.

Parece-me ainda preocupante o peso que na imprensa assumem os “comentadores”, ocupam mais espaço que as notícias, vendem agendas, mascaram-se de jornalistas quando, na sua maioria, mais não são que “papagaios” dos poderes ou dos aspirantes a poderes.

Para combater este pântano seria necessária uma imprensa forte, não proletarizada e precária que pudesse cumprir a sua imprescindível função.

A imprescindível sobrevivência da imprensa, da boa imprensa, para além da qualidade e competência do seu próprio trabalho, também se garante na escola, nos hábitos de leitura, na educação, na cidadania.

segunda-feira, 18 de novembro de 2024

A LER "PESSOAS QUE DETESTAMOS"

 O texto de José Gameiro no Expresso, “Pessoas que detestamos”, merece leitura atenta. Nos tempos que vivemos os desafios e interrogações são de diversa natureza, mas (quase todos) de importância crítica.

domingo, 17 de novembro de 2024

NOTÍCIAS DA EDUCAÇÃO INCLUSIVA

 Ontem realizou-se em Évora, Lisboa, Faro, Coimbra e Porto uma manifestação “Por uma inclusão efectiva nas escolas" que decorreu em simultâneo em Coimbra, Évora, Faro, Lisboa e Porto, convocada pelo Movimento por uma Inclusão Efectiva para expressão e chamada de atenção sobre os problemas sentidos nas escolas para o cumprimento do direito à educação de crianças necessidades especiais, pedindo desculpa pela expressão que, parece, já não se deve usar.

É recorrente a voz de pais, professores, técnicos ou directores escolares e algumas referências na imprensa relativamente a essas dificuldades e, como se dizia há uns anos, … a luta continua.

Algumas notas retomadas, não vale a pena inventar.

Segundo dados da DGEEC no ano lectivo passado estavam cerca de 90000 alunos ao abrigo de medidas selectivas e/ou adicionais de acordo com o DL 54/2018.

Recordo que em 2018 o ME decidiu que já não podíamos referir alunos com “necessidades educativas especiais” porque a designação não era conforme a “educação inclusiva”, categorizava alguns alunos o que não é uma boa prática. Assim, determinou que os alunos que revelavam algum tipo de dificuldade eram objecto de medidas educativa arrumadas em três categorias, as medidas “universais”, as medidas “selectivas” e as medidas “adicionais”. Isto parece que é uma outra forma de categorizar, mas não é. Na educação inclusiva é assim que se faz.

Também acontece que temos alguma dificuldade em interpretar os dados que vão sendo divulgados, aumenta o número de alunos com dificuldades de alguma natureza ou aumenta o número de alunos com medidas aplicadas. E quais as dificuldades dos alunos que se inscrevem nas medidas “universais” e assim ficam incluídos.

São habituais, tal como na peça, as preocupações com a insuficiência preocupante dos recursos humanos, professores e técnicos, designadamente psicólogos e terapeutas, auxiliares educativos bem como o crescimento significativo do número de alunos sinalizados com algum tipo de dificuldade. Aliás, também se conhecem situações em que professores com funções de apoio assumem outro trabalho minimizando a falta de professores.

 Deste quadro resulta a impossibilidade de assegurar a muitos alunos aquilo que é “apenas” um direito e não um privilégio, uma resposta educativa de acordo com as suas necessidades.

Na verdade, muitos alunos não, não estão incluídos nem sequer integrados, estão “entregados” com as consequências que professores e pais bem conhecem. E não estou a considerar apenas os “Selectivos”, os “Adicionais” ou os “Universais”.

Este cenário de insuficiência de recursos tem sido referenciado em trabalhos diversos incluindo da Inspecção-Geral de Educação e Ciência.

Como tenho afirmados e escrito inúmeras vezes, acompanhei com esperança e expectativa a mais do que necessária, reafirmo, mudança legislativa desencadeada no âmbito da Educação Inclusiva que se traduziu no DL 54/2018 ele próprio associado a todo um quadro de mudança envolvendo, designadamente a definição do Perfil dos Alunos à Saída da Escolaridade Obrigatória, das Aprendizagens Essenciais ou o Decreto-Lei n.º 55/2018 relativamente ao currículo. Todo este edifício potenciaria a inovação, a mudança de paradigma, de vários paradigmas aliás, e alguns falavam mesmo da revolução que estava em marcha e anunciavam os amanhãs que cantam.

Com confiança em algumas virtudes do novo quadro aguardei expectante pela revelação da anunciada escola inclusiva de 2ª geração. No entanto, para meu desconforto e cansaço, o que fui conhecendo e vai sendo divulgado não me ajudou a perceber o que seria.

Continuo a verificar que, tal como aconteceu com o velho 319/91, (nesta altura eu já trabalhava neste universo há 15 anos), quer com o 3/2008 e depois com o actual 54/2018 existiam e existem professores e escolas a realizar trabalhos notáveis que devem ser conhecidos e reconhecidos.

A avaliação dos alunos, a definição dos apoios nas diferentes tipologias (já usadas como categorização uma vez que a outra categorização já não existe), o funcionamento das Equipas, os recursos disponíveis, a organização da intervenção, os papéis ou a articulação dos intervenientes continuam com inúmeros sobressaltos. Recebo muitos testemunhos e, como referi, os dados conhecidos também não são particularmente animadores.

Apesar de agora estar mais desligado em termos profissionais, o interesse e a paixão por este universo mantêm-se e apesar do cansaço, sempre me animo quando conheço situações muito positivas que, felizmente, acontecem todos os dias em tantas escolas.

No entanto, nem tudo vai bem, muito longe disso. Não torturem a realidade que ela não vai confessar.

Há muito que fazer, muito para caminhar.

 

PS – Já agora e mais uma vez, talvez já vá sendo tempo de não insistir no uso da designação "educação inclusiva" para referir a educação dos alunos que têm algum tipo de dificuldade e que se encaixam nas novas "categorias", os "universais", os "selectivos" e os "adicionais" criadas pelo DL 54, a educação inclusiva é de todos e, portanto, deveria ser “apenas” educação.

sexta-feira, 15 de novembro de 2024

DOS AUXILIARES DE EDUCAÇÃO, PERDÃO, DOS ASSISTENTES OPERACIONAIS

 Quando na imprensa surgem referências aos auxiliares de educação, não gosto da designação por “assistentes operacionais”, são quase sempre e sem ordenar por frequência, porque não existem em número suficiente nas escolas apesar de alguma mudança, porque estão em greve, tal como hoje acontece, ou por que se verificou mais um episódio de agressão a estes funcionários das escolas.

São bem mais raros os trabalhos centrados na importância da sua função nas escolas. Já aqui referi em várias circunstâncias essa relevância e retomo algumas notas.

Nunca é demais sublinhar a importância das funções deste grupo profissional e a necessidade de rácios adequados, qualificação, segurança e carreira que minimizem problemas que têm vindo a ser regularmente colocados por pais, professores e directores.

É recorrente a referência por directores, professores ou pais a insuficiência do número de profissionais por escola, a importância de formação par a tarefa que desempenham e os riscos da situação actual, insegurança para alunos e docentes, por exemplo.

Seria desejável que a gestão desta matéria considerasse as especificidades das comunidades educativas e não se seguissem critérios cegos de natureza administrativa que são parte do problema e não parte da solução. A passagem de tutela para as autarquias não aparenta ter introduzido mudanças substantivas.

Para além da variável óbvia, número de alunos, é necessário que se contemplem critérios como tipologia das escolas, ou seja, o número de pavilhões, a existência de cantinas, bares e bibliotecas e a extensão dos recreios ou a frequência de alunos com necessidades especiais.

Mais uma vez, os auxiliares de educação, insisto na designação, desempenham e devem desempenhar um importante papel educativo para além das funções de outra natureza que também assumem e que exige a adequação do seu efectivo, formação e reconhecimento. No caso mais particular de alunos com necessidades educativas especiais e em algumas situações serão mesmo uma figura central no seu bem-estar educativo, ou seja, são efectivamente auxiliares de acção educativa. A situação que atravessamos e se manterá no próximo ano lectivo potencia a importância do seu trabalho.

A excessiva concentração de alunos em centros educativos ou escolas de maiores dimensões não tem sido acompanhada pela adequação do número de auxiliares de educação. Aliás, é justamente, também por isto, poupança nos recursos humanos, que a reorganização da rede, ainda que necessária, tem sido feita com sobressaltos e com a criação de problemas.

As alterações de natureza funcional que a segurança em termo de saúde exige reflectem-se, naturalmente na necessidade de auxiliares de educação em número suficiente.

Os auxiliares educativos cumprem por várias razões um papel fundamental nas comunidades educativas que nem sempre é valorizado incluindo na estabilidade da sua contratação e formação situação de precariedade descontinuidade no exercício profissional.

Com frequência são elementos da comunidade próxima das escolas o que lhes permite o desempenho informal de mediação entre famílias e escola, têm uma informação útil nos processos educativos e uma proximidade com os alunos que pode ser capitalizada importando que a sua acção seja orientada, recebam formação e orientação e que se sintam úteis, valorizados e respeitados.

Os estudos mostram também que é nos recreios e noutros espaços fora da sala de aula que se regista um número muito significativo de episódios de bullying e de outros comportamentos socialmente desadequados. Neste contexto, a existência de recursos suficientes para que a supervisão e vigilância destes espaços seja presente e eficaz. Recordo que com muita frequência temos a coexistir nos mesmos espaços educativos alunos com idades bem diferentes o que pode constituir um factor de risco que a proximidade de auxiliares de educação minimizará.

Considerando tudo isto parece essencial o contributo dos auxiliares de educação para a qualidade dos processos educativos. Assim, é imprescindível a sua presença em número suficiente, que se mantenham nas escolas com estabilidade e que sejam formados, orientados e valorizados na sua importante acção educativa. Nos tempos que vivemos é ainda mais importante.

Qual será a parte que não se compreende?

A falta de auxiliares de educação e o apoio ao seu trabalho, evidentemente.

quinta-feira, 14 de novembro de 2024

O SILÊNCIO DO CORO DOS ESCRAVOS. OUTRA VEZ

 Continuam a ser recorrentes as notícias sobre situações de tráfico de pessoas registando-se um aumento do número de casos identificados e com ramificações envolvendo outros países.

Há algum referi aqui que o Relatório Anual de Segurança Interna recentemente divulgado evidenciava que a criminalidade associada à imigração ilegal e tráfico de pessoas foi a que mais cresceu em 2023, mais 68% e 29%, respectivamente.

De facto, têm sido recorrentes as referências a situações inaceitáveis de exploração e maus-tratos envolvendo muito frequentemente cidadãos estrangeiros.

É conhecida e muitas vezes objecto de intervenção e notícia a situação que se verifica no Alentejo, mas não só, e que tem vindo, por várias razões, a aumentar, de exploração brutal, condições de habitação degradantes, vitimização por redes organizadas de “tráfico” de mão-de-obra em que se encontram milhares de cidadãos estrangeiros. Nas primeiras levas surgiram muitos cidadãos oriundos de países de leste e africanos e,  mais recentemente, de países asiáticos.

A escandalosa e irresponsável política (?!) em matéria de agricultura e ambiente estarão gradualmente a transformar o Alentejo, o Algarve também, num deserto, mas que neste momento alimenta quilómetros e quilómetros de culturas intensivas e depredadoras que para já exigem mão-de-obra não existente no país e a prazo condenarão os alentejanos a viver no deserto. Os responsáveis assobiam para o lado e, por vezes, parecem virgens ofendidas face a algo que toda gente conhecia.

Este cenário, o tráfico de pessoas e a exploração quase escravizante, tal como a fome, é das matérias que maior embaraço pode causar em sociedades actuais e deveria ser algo de improvável no séc. XXI em sociedades desenvolvidas. Parece algo “fora do tempo” e de impossível existência nos nossos países, estamos a falar da Europa. Mas existe e é sério o problema que, como não podia deixar de ser, atinge os mais vulneráveis.

Este negócio, o tráfico e exploração de pessoas de todas as idades, um dos mais florescentes e rentáveis em termos mundiais, alimenta-se da vulnerabilidade social, da pobreza e da exclusão o que, como sempre, recoloca a imperiosa necessidade de repensar modelos de desenvolvimento económico que promovam, de facto, o combate à pobreza e, caso evidente em Portugal, às enormes assimetrias na distribuição da riqueza. Também por isso, são recorrentes as notícias de portugueses usados como escravos em explorações agrícolas espanholas ou redes de contratação de trabalhadores da construção civil para países do primeiro mundo europeu.

Estes tempos são marcados por competição, diminuição de direitos e apoios sociais, pressão sobre a produtividade. Tudo isto é submetido a um deus mercado que não tem alma, não tem ética, é amoral e pode alimentar, sem particulares sobressaltos, algumas formas de escravatura mais "leves" ou, sobretudo em casos de particular fragilidade dos envolvidos, bastante pesadas.

As pessoas, muitas pessoas, apenas possuem como bem a sua própria pessoa e os mercados aproveitam tudo. Por isso, se compra e vende as pessoas dando-lhe a utilidade que as circunstâncias, a idade, e as necessidades de "consumo" ou "produção" exigirem. O que parece ainda mais inquietante é o manto de silêncio e negligência, quando não cumplicidade, que frequentemente cai sobre este drama tornando transparentes as situações de exploração ou escravatura, não se vêem, não se querem ver.

Neste universo não conseguimos ouvir o coro dos escravos, não têm voz.

quarta-feira, 13 de novembro de 2024

NÃO DÁ PARA ENTENDER

 Na proposta de orçamento de Estado para 2025 em discussão no Parlamento prevê para a ciência 607 milhões de euros, o valor mais baixo desde 2018 e menos 68,1 milhões do que a verba definida para 2024.

Trata-se de uma proposta em contraciclo com a generalidade das políticas públicas em matéria de ciência.

É reconhecido que o desenvolvimento e bem-estar das sociedades actuais é assente no conhecimento e na ciência.

O desinvestimento no sistema de produção de produção científica e divulgação do conhecimento é um "tiro no pé".

Tem ainda como consequência o subaproveitamento dos recursos já estruturados limitando a sua capacidade de trabalho. Mais estranho ainda é que esta decisão está inscrita num cenário de excedente orçamental.

Não dá para entender.


terça-feira, 12 de novembro de 2024

PSICÓLOGOS, PSICOLOGIA E EDUCAÇÃO. MAIS UMA VEZ

 Há alguns dias li no Público que o Governo anunciou para o primeiro trimestre de 2025 o concurso para vinculação dos cerca de dois mil técnicos especializados, psicólogos, terapeutas da fala, informáticos ou assistentes sociais que desempenham funções nas escolas há anos com contratos a termo e que tinham sido há pouco uma vez mais reconduzidos. Trata-se de uma situação de precariedade inaceitável e alimentada por sucessivas tutelas das pastas da Educação e das Finanças.

Retomando algumas notas e direccionando mais para a área que melhor conheço, a psicologia, existem de facto múltiplas situações de precariedade na situação dos psicólogos a intervir no sistema educativo.

Considerando o recente Referencial para a Intervenção dos Psicólogos em Contexto Escolar, o estado da arte em matéria de psicologia da educação e de contextos de intervenção carregados de constrangimentos, o empenhamento e a competência dos profissionais pode dar um contributo sólido para a qualidade dos processos educativos de todos os alunos. Para além do trabalho com alunos é crítica a colaboração e intervenção com professores, funcionários, direcções e pais e encarregados de educação, para além de outras respostas na comunidade dirigidas à população em idade escolar.

No entanto, como tantas vezes tenho escrito e afirmado, desde 1991 a presença dos psicólogos em contextos educativos tem vivido entre as declarações dos vários actores, incluindo a tutela, sobre a sua necessidade e importância e a lentidão, insuficiência e precariedade no sentido da sua concretização.

É recorrente a afirmação por parte de sucessivas equipas do ME da prioridade em promover o alargamento do número de técnicos e a estabilidade da sua presença nas comunidades educativa, mas é algo que, como se percebe, tarda em concretizar-se e insisto em notas já por aqui escritas e marcadas pelo óbvio envolvimento pessoal, quer na formação quer na intervenção ao longo de algumas décadas.

No entanto, para além da precariedade, o número de psicólogos a desempenhar funções no sistema educativo público está ainda longe do rácio aconselhado para um trabalho mais eficiente.

Temos situações em que existe um psicólogo para um agrupamento com várias escolas e que envolve um universo com mais de 2000 alunos e a deslocação permanente entre várias escolas numa espécie de psicologia em trânsito. Não é uma resposta, é um fingimento de resposta que não serve adequadamente os destinatários, a comunidade educativa, como também, evidentemente, compromete os próprios profissionais.

Temos também inúmeras escolas onde os psicólogos não passam ou têm “meio psicólogo” ou menos e ainda a prestação de apoios especializados de psicologia em “outsourcing” e com a duração de meia hora semanal uma situação inaceitável e que é um atentado científico e profissional e, naturalmente, condenado ao fracasso de que o técnico independentemente do seu esforço e competência será responsabilizado. No entanto, dir-se-á sempre que existe apoio de um profissional de psicologia. O Referencial orientador da intervenção dos psicólogos nos contextos escolares é um documento positivo, mas corre o risco ser inaplicável em muitas situações face ao alargado espectro de funções e actividades previstas associado ao universo de destinatários.

Neste cenário, a intervenção dos profissionais, apesar do esforço e competência, tem um potencial de impacto aquém do desejável e necessário. Áreas de intervenção como dificuldades ou problemas nas aprendizagens, questões ligadas aos comportamentos nas suas múltiplas variantes, alunos com necessidades especiais, trabalho com professores e pais, trabalho ao nível da prevenção de problemas, etc., exigem recursos e tempo que não estão habitualmente disponíveis.

Acresce que o recurso ao modelo de “outsourcing” ou a descontinuidade do trabalho é um erro em absoluto, é ineficaz, independentemente do esforço e competência dos profissionais envolvidos.

Como é que se pode esperar que alguém de fora da escola, fora da equipa, técnica e docente, fora dos circuitos e processos de envolvimento, planeamento e intervenção desenvolva um trabalho consistente, integrado e bem-sucedido com os alunos e demais elementos da escola?

Das duas uma, ou se entende que os psicólogos sobretudo, mas não só, os que possuem formação na área da psicologia da educação podem ser úteis nas escolas como suporte a dificuldades de alunos, professores e pais em diversos áreas, não substituindo ninguém, mas providenciando contributos específicos para os processos educativos e, portanto, devem fazer parte das equipas das escolas, base evidentemente necessária ao sucesso da sua intervenção, ou então, é uma outra visão, os psicólogos não servem para coisa alguma, só atrapalham e, portanto, não são necessários.

A situação existente parece-me, no mínimo, um enorme equívoco que além de correr sérios riscos de eficácia e ser um, mais um, desperdício (apesar do empenho e competência que os técnicos possam emprestar à sua intervenção), tem ainda o efeito colateral de alimentar uma percepção errada do trabalho dos psicólogos nas escolas.

Cheguei ao fim de uma carreira de 46 anos ligada à psicologia da educação e ainda aguardo que a importância e prioridade sempre atribuídas ao trabalho dos psicólogos em contextos educativos se concretizem de forma suficiente e estável.

segunda-feira, 11 de novembro de 2024

PALMADA AFECTIVA OU PEDAGÓGICA É COISA QUE NÃO EXISTE

 No âmbito da realização da 1.ª Conferência Mundial sobre Maus Tratos na Infância, da Organização das Nações Unidas em Bogotá na semana passada em Bogotá, mais alguns países decidiram proibir os castigos corporais a crianças alargando o já significativo número de países em que isso acontece. Relembro que o Código Penal Português estabelece desde 2007 no Arº 152 a proibição dos “castigos corporais”.

No entanto, a realidade para muitas crianças ainda integra os castigos corporais.

Em 2022 o Instituto de Apoio à Criança apresentou a campanha “Nem Mais uma Palmada” que tem como objectivo o minimizar ou acabar com os castigos corporais e promover outros procedimentos no âmbito da acção educativa familiar. Realizou também um estudo, “Será que uma palmada resolve?”, sobre procedimentos adoptados no âmbito da acção educativa familiar. Responderam 1943 pessoas, 73% com filhos e 44% a trabalhar com crianças. Cerca de 30% dos inquiridos “ainda consideram poder usar-se castigos corporais” em situações como o não-cumprimento de regras ou limites definidos por familiares, a “má criação” ou a desobediência.

Quer em termos profissionais, designadamente em muitas conversas com pais, quer em notas aqui deixadas, tenho abordado frequentemente esta temática.

Num trabalho divulgado em 2021 desenvolvido por investigadores da Universidade de Xangai evidenciou-se uma relação autoritária dos pais para com os filhos tem impactos negativos no seu desenvolvimento. O estudo, recorrendo a técnicas de electroencefalografia, evidenciou atraso no desenvolvimento das funções cerebrais em comparação com outras crianças educadas através de estilos parentais menos autoritários.

Ao abordar estas questões prefiro a terminologia “parentalidade severa" que me parece mais adequada e também usada na literatura e envolve recorrer com regularidade ao gritar, bater ou outro tipo de comportamento coercivo, humilhação, além de ameaças físicas e verbais como forma de punição.

A referência ao impacto negativo da parentalidade severa não é nova, embora seja importante sublinhar nesta investigação as consequências no desenvolvimento de funções cerebrais.

Recordo um trabalho desenvolvido pela Universidade de Pittsburgh nos EUA divulgado na Society for Research in Child Development em 2017, “Harsh parenting predicts low educational attainment through increasing peer problems”. Considerando diferentes variáveis foram seguidos 1482 alunos durante nove anos e evidenciou-se uma relação sólida entre o que foi considerado “parentalidade severa” e baixo rendimento escolar e problemas de comportamento nas crianças envolvidas nesse “modelo” de educação familiar.

Em 2018 a Academia Americana de Pediatria produziu novas orientações sobre a parentalidade afirmando veementemente que bater nas crianças, insultá-las, humilhá-las ou envergonhá-las são comportamentos a banir.

Um trabalho mais recente de Liz Gershoff divulgado em 2021 é também elucidativo sobre a mesma questão.

Dados divulgados em 2019 relativos ao Projecto Geração XXI, do Instituto de Saúde Pública da Universidade do Porto, que acompanha desde o nascimento um número muito significativo de crianças na área metropolitana do Porto, mostraram que 75% das crianças com 7 anos serão vítimas de agressão psicológica ou castigos corporais em contexto de educação familiar. Cerca de 10% sofreram agressões graves (como bater com cinto ou objecto contundente ou queimar) com frequência. As avaliações mostram que que impacto na saúde é significativo, 58% apresentam valores de inflamação elevados, quase o dobro das que não são vítimas de maus-tratos.

Como acima referi, no trabalho realizado com pais é muito frequente estas questões serem afloradas assim como é habitual que quando na imprensa se refere comportamentos menos positivos de crianças ou adolescentes são inúmeros os comentários e discursos sobre a alegada falência das famílias na definição de regras e limites nos comportamentos de crianças e adolescentes. Muitos destes discursos e comentários têm sido acompanhados de referências ao facto de não se recorrer a umas “palmadas”, à “pedagogia do chinelo” ou outras variações no mesmo tom, com uns “tabefes” a coisa resolvia-se. Muitas vezes as referências são mitigadas com o recurso à ideia de “palmada educativa” ou a variante “palmada pedagógica”.

As alusões às dificuldades das famílias ou da escola na regulação dos comportamentos de crianças e adolescentes podem ser justificáveis, mas lidar com estas dificuldades através do bater parece-me na verdade preocupante para além da sua potencial ineficácia. Ninguém pode garantir que foram ou que são as “tareias” que constroem pessoas de bem.

Confesso que sinto alguma dificuldade em compreender como um comportamento de violência de várias formas dirigido a uma criança possa ser algo de educativo.

No entanto e dito tudo isto, também entendo que comportamentos inadequados ou incompetentes não significam necessariamente que estejamos perante pessoas, pais, más ou incompetentes.

Todos nós, alguma vez, agimos de uma forma menos ajustada ou adequada com os nossos filhos e isso não nos transforma em pessoas más, significa que somos apenas pessoas, que somos imperfeitos, por assim dizer e para utilizar uma expressão actual.

Assim sendo, creio que devemos ser cautelosos, quer na defesa da "palmada ou estalada educativa", quer na diabolização definitiva de pais que numa situação eventualmente esporádica e de tensão assumem um comportamento de que podem ser os primeiros a arrepender-se.

Esta nota, não branqueadora ou desculpabilizante de nada, pode não ser particularmente simpática, mas estou cansado, tanto de discursos de legitimação do efeito "educativo" da violência e outros comportamentos integrados na parentalidade severa dirigidos a crianças, como de discursos demagógicos e, por vezes hipócritas, que clamam pelo "crucificação" cega de uma pessoa, o outro que bate, mas são produzidos por gente desatenta ou mesmo autora ou apoiante doutros comportamentos dirigidos a miúdos tão indignos quanto a "palmada" ainda que menos visíveis.

Finalmente, a experiência mostra-me que muitos pais desejam ou exprimem a necessidade de alguma ajuda ou orientação nestas questões.

PS – O texto de Beatriz Imperatori, Directora Executiva – UNICEF Portugal, “Violência contra crianças. É tempo de agir!” no Público é um retrato preocupante da situação mundial e portuguesa no que respeita à forma como são (des)tratadas muitas crianças.

“Mas as crianças, Senhor, porque lhes dais tanta dor?!....”, já se interrogava Augusto Gil.


sábado, 9 de novembro de 2024

O DESEMPENHO ESCOLAR

 O IAVE divulgou os resultados das provas de aferição do 2.º, 5.º e 8.º ano realizadas em 2024. Sem surpresa, mas com preocupação, os resultados continuam globalmente a baixar existindo domínios em algumas disciplinas com níveis em que os alunos demostram fortes dificuldades.

Mais uma vez é de reflectir na discrepância de avaliações externas, provas de aferição, exames finais ou estudos internacionais que expressam resultados significativamente diferentes dos dados da avaliação interna traduzidos nos chamados percursos de sucesso, o completar de um ciclo nos anos previstos para esse ciclo.

Sabemos, e é bom que assim seja, que neste ano as provas de aferição serão realizadas no fim do ciclo e com modelo diferentes ainda que, lamentavelmente, em suporte digital. No entanto, é preciso mais.

Se atentarmos nos indicadores dos percursos de sucesso e como aqui já tenho referido, poderemos interpretar a transição de ano como sucesso na aprendizagem de competências e conhecimentos que, estranhamente não se traduzem em resultados da avaliação externa ou teremos de considerar que ter sucesso é a “a passagem de ano” na velha fórmula de “transita, mas não progride”? Conhecem-se relatos de escolas em que se verifica alguma “pressão” para a “transição” colocando isto de forma leve.

Importa sublinhar com muita clareza que levantar esta questão não significa a defesa da retenção como ferramenta de sucesso e qualidade. Não é, ainda há pouco aqui abordei a questão, sabemos que o “chumbo”, só por si, não gera sucesso e qualidade. Nenhuma dúvida sobre isto.

E volto a insistir. A qualidade promove-se, é certo e deve sublinhar-se, com a avaliação rigorosa e regular das aprendizagens e com regulação externa, sim, naturalmente, mas também com a avaliação justa e competente do trabalho dos professores e das escolas, com a definição de currículos adequados, com a estruturação de dispositivos de apoio a alunos e professores eficazes e suficientes, com a definição de políticas educativas que sustentem um quadro normativo simples e coerente e modelos adequados e reais de autonomia, organização e funcionamento desburocratizado das escolas, com a definição de objectivos de curto e médio prazo, etc.

É o que acontece, genericamente, nos países com mais baixas taxas de retenção escolar e que significam conhecimentos e competências adquiridas.

É o que ainda não conseguimos fazer acontecer de forma consistente, generalizada e sustentada em Portugal, apesar da imensidade de projectos, iniciativas, inovação, actividades, ondas de capacitação, que, demasiadas vezes, chegam do exterior às escolas. Podem ser interessantes, mas … não são mágicas, por mais que num exercício de "wishful thinking" os queiramos entender e vender como tal.

Não poderá ser este o caminho.

sexta-feira, 8 de novembro de 2024

A LER, "QUANDO A CRIANÇA-REI TEM ESCOLA A TEMPO INTEIRO"

 Mais uma vez merece leitura o texto de Paulo Prudêncio no Publico, “Quando a criança-rei tem escola a tempo inteiro”.

Muitas vezes aqui tenho abordado a necessidade urgente a reflexão e intervenção adequada relativamente aos problemas dos alunos, aprendizagens e comportamentos, às questões sérias que envolvem os professores incluindo as de natureza profissional, às relações interpessoais e clima social ou de organização, ao funcionamento e governação das escolas. No entanto, tal como Paulo Prudêncio, não simpatizo com a alimentação da ideia de que todos os que diariamente chegam às escolas entram no inferno.

Ainda assim, este entendimento não invalida o saber que para alguns professores, funcionários e alunos a escola será mesmo … o inferno.

A verdade é que, apesar de todos os constrangimentos e dificuldades e do que ainda está por fazer, o trabalho desenvolvido por professores, técnicos, funcionários e alunos é bem-sucedido na maioria das situações e isso deve ser sublinhado. De uma forma geral, professores, técnicos, funcionários e alunos, quase todos, fazem a sua parte.

Mas há quem não faça.

quinta-feira, 7 de novembro de 2024

ASSUSTADOR!

Comentar o quê? Como?

Onde estamos a falhar?

Que mundo estamos a construir?

Estamos num tempo de perplexidade e dúvida face ao crescimento de discursos populistas e demagógico, apelando à intolerância, ao xenofobismo e a valores de direita radical. A eleição de Trump, o que se tem vindo a passar na Europa do Norte, Central ou na América do Sul, são exemplos deste caminho que nos deixa inquietos face ao futuro.

Milhões de excluídos e pobres e de jovens sem presente e sem futuro são um alvo fácil para discursos populistas e radicais.

As sementes de mal-estar que que estes milhões de pessoas carregam, muitos deles desde criança são muito facilmente capitalizadas e mobilizadas.

Como muitas vezes tenho escrito, a mediocridade da generalidade das lideranças e o que lhes permitimos fazer criaram, por exemplo, a actual União (?!) Europeia onde, grosso modo, 25% da sua população mais nova e 18% da sua população mais velha é pobre ou corre risco de exclusão e pobreza.

É aqui que incuba e nasce o que nos assusta. É esta a batalha que não podemos perder e não sei se a estamos a ganhar.

Os nossos filhos e netos e ... não nos perdoarão.


quarta-feira, 6 de novembro de 2024

DA EDUCAÇÃO PRÉ-ESCOLAR

 Segundo dados divulgados pelo Governo existirão cerca de 12000 crianças sem lugar em instituições de educação pré-escolar, incluindo algumas abrangidas pelo programa Creche Feliz.

O objectivo será atingir em 2025 uma taxa de frequência nos jardins de infância de 90% aos três anos. O valor actual é de 83%.

De acordo com o relatório Education at a Glance 2024 da OCDE, dada a resposta muito significativa de natureza privada, o Estado suporta 67% da despesa, menos 19 pontos que a média da OCDE em que o Estado suporta 86 e as famílias 33% o valor mais alto OCDE.

Apesar deste cenário, Portugal é um dos países com taxas mais elevadas de crianças a frequentar a educação pré-escolar, obviamente, com um esforço enorme das famílias. Ainda de acordo com o Education at a Glance 2024, em Portugal, à semelhança da maioria dos países da OCDE, as famílias com menor rendimento experimentam maior dificuldade no acesso a educação de infância no período até aos 2 anos. A diferença para as famílias com maior rendimento é de 25%, de 45 para 70%. Também esta diferença é superior à média que é de 19%.

A garantia do acesso à educação pré-escolar em Portugal é aos 3 anos, uma posição intermédia no contexto europeu. No entanto, a escolaridade obrigatória inicia-se aos seis anos tal como na maioria dos países europeus e como sabemos existem fortes dificuldades e assimetrias na resposta pública na educação pré-escolar o que explica os custos elevadíssimos suportados pelas famílias.

Sou dos tenho alguma reserva face à obrigatoriedade da frequência do jardim-de-infância aos três anos, mas defendo a universalidade do acesso. Dito de outra maneira, nenhuma criança com três anos deve ser obrigada frequentar jardim-de-infância, mas qualquer família que precise de aceder a esta resposta deve ter acesso e em condições acessíveis e com qualidade.

Assim, mais do que discutir sobre o alargamento da escolaridade obrigatória a partir dos três anos importa, isso sim, assegurar, a universalidade e acessibilidade da resposta o que ainda está longe de ser conseguido.

Sabemos que existem listas de espera de creches e jardins-de-infância no chamado sector social em que as mensalidades são indexadas aos rendimentos familiares. Esta situação afecta sobretudo zonas mais urbanas e a alternativa da resposta privada é inacessível para muitas famílias.

Acresce que para além da dificuldade de encontrar respostas os custos elevados do acesso aos equipamentos, boa parte privada ou da rede social, são dos mais altos no contexto europeu de acordo com o relatório "Starting Strong 2017" da OCDE e agora reforçados com o Education at a Glance 2024. Aliás esta questão é contributiva para a baixa natalidade tal como vários outros aspectos das políticas públicas, designadamente as políticas de família.

Reafirmo as dúvidas sobre a obrigatoriedade da frequência, mas tenho a maior convicção na necessidade de garantir a universalidade do acesso à educação pré-escolar aos três anos criando uma rede de oferta com respostas de qualidade, acessíveis, logística e economicamente.

Sabemos todos e a evidência sustenta que o desenvolvimento e crescimento equilibrado e positivo dos miúdos, bem como o seu trajecto educativo e escolar são fortemente influenciados pela qualidade das experiências educativas familiares e institucionais nos primeiros anos de vida, de pequenino é que ...

Assim, existem áreas na vida das pessoas que exigem uma resposta e uma atenção que sendo insuficiente ou não existindo, se tornam uma ameaça muito séria ao futuro, a educação de qualidade universalmente acessível para os mais pequenos é uma delas.

No entanto e mais uma vez, a educação pré-escolar é bastante mais que a “preparação” para a escola, não deve ser entendida como uma etapa na qual os meninos se preparam para entrar na escola embora se saiba do impacto positivo que assume no seu trajecto escolar.

terça-feira, 5 de novembro de 2024

PANDEMIA, APRENDIZAGENS E SUCESSO

 Foi lançado ontem um livro, "Improving National Education Systems After Covid-19 - Moving Forward After PIRLS 2021 and PISA 2022", que de acordo com a imprensa aborda os efeitos da pandemia nas aprendizagens dos alunos em doze países, incluindo Portugal.

A este propósito e com base nas curtas referências que encontrei umas notas pedindo antecipadamente desculpa pela extensão do texto.

Não sei quanto mais tempo poderemos associar os resultados escolares aos efeitos da pandemia e é minha convicção que, apesar da necessidade de medidas de políticas públicas que se reflictam na conjuntura, muito mais importantes e necessárias são medidas que tenham impacto em questões estruturais e para além da pandemia.

É claro que mudanças estruturais têm custos pelo que será de considerar a necessidade de investimento sério em educação, 6% do Produto Interno Bruto o que está definido pela UNESCO como meta para 2030.

Uma primeira referência à dimensão associada aos professores, modelo de carreira valorizada, justa e atractiva.

Quanto à escola, parece crítico a desburocratização asfixiante e reflectir sobre modelos de governança das escolas mais adequados, competentes e participados.

Com real autonomia, com mais recursos e com modelos organizativos mais adequados e desburocratizados as escolas poderiam certamente fazer mais e melhor. que quem vem de fora numa passagem transitória, mais ou menos longa, mas transitória. Sim, tudo isto deveria ser objecto de escrutínio, regulação e avaliação também externa, naturalmente.

Escolas com mais auxiliares, auxiliares informados e formados podem ter um papel importante em diferentes domínios.

Directores de turma com mais tempo para os alunos e professores com menos alunos poderiam desenvolver trabalho útil em múltiplos aspectos do comportamento e da aprendizagem.

Psicólogos e outros técnicos em número mais adequado poderiam acompanhar, promover e desenvolver múltiplas acções de apoio a alunos, professores, técnicos e pais.

Mediadores que promovessem iniciativas no âmbito da relação entre escola, pais e comunidade seriam, a experiência mostra-o, um investimento com retorno. Repetindo e sintetizando, os professores sabem como avaliar e identificar as dificuldades dos alunos. O que verdadeiramente é imprescindível é dotar as escolas de forma continua e estável dos recursos necessários para minimizar tanto e tão rápido quanto possível as dificuldades que identificam.

Recursos suficientes para recorrer a apoios tutoriais ou ao trabalho com grupos de alunos de menor dimensão, apoios específicos a alunos mais vulneráveis, técnicos, psicólogos, por exemplo, num rácio que possibilite um trabalho multidimensionado como é exigido, etc., são essenciais e serão sempre essenciais. Torna-se também necessária a existência de dispositivos de regulação que sustentem o trabalho desenvolvido e de processos desburocratizados.

Uma nota final para sublinhar a necessidade de estabilização curricular e da questão da avaliação e percurso escolar dos alunos e reafirmo a importância da avaliação externa como reguladora do trabalho realizado.

Desculpem a extensão do texto, mas como muitas vezes aqui tenho referido, devemos reflectir seriamente sobre as discrepâncias sérias entre os resultados dos percursos de sucesso, as avaliações internas e os resultados dos nossos alunos em estudos internacionais ou nas provas de aferição e exames nacionais, a avaliação externa

Considerando como indicador de sucesso concluir o ciclo no tempo esperado, coloca-se a questão que já aqui tenho abordado. Poderemos interpretar a transição de ano como sucesso na aprendizagem de competências e conhecimentos ou teremos de considerar que ter sucesso é a “a passagem de ano” na velha fórmula de “transita, mas não progride”? Conhecem-se relatos de escolas em que se verifica alguma “pressão” para a “transição”.

Dito isto, também quero com muita clareza que levantar esta questão não significa a defesa da retenção como ferramenta de sucesso e qualidade. Não é, sabemos que o “chumbo”, só por si, não gera sucesso e qualidade. Nenhuma dúvida sobre isto.

Recordo um Relatório do CNE de 2017 no âmbito do Projecto aQeduto em parceria com a Fundação Francisco Manuel dos Santos, em que se realizou uma análise ao custo de medidas de combate ao insucesso escolar. Parece-me perfeitamente actual do ponto de vista da reflexão necessária.

 Em termos económicos e recorrendo aos estudos já desenvolvidos o impacto económico da retenção é estimado em cerca de 6000€ por aluno em cada ano.

Adaptando o modelo desenvolvido pela Education Endowment Foundation, o Projecto aQeduto identifica o grau de eficácia e custo económico de um elenco de medidas de combate ao insucesso. Das medidas analisadas, a retenção tem o custo mais elevado e a eficiência é negativa, promove um atraso de 4 meses. Ensinar a estudar é a medida mais económica, 87€, e mais eficiente, promove um ganho de 8 meses de aprendizagem.

 


Estes dados são importantes, mas a sua substância não é nova.

Também no Relatório “Low-Performing Students - Why They FallBehind and How To Help Them Succeed” divulgado pela OCDE em 2017 se referia que o “chumbo”, a retenção, é para os alunos portugueses o principal factor de risco para os resultados na avaliação posterior, dito de outra maneira, os alunos chumbam … mas não melhoram.

De facto, definitivamente, não adianta discutir se o chumbo transforma o insucesso em sucesso. Não transforma, repetir só por repetir não produz sucesso, aliás gera mais insucesso conforme os estudos mostram.

Confesso sempre alguma surpresa e dificuldade em compreender quando ao discutir-se os efeitos pouco positivos da retenção algumas vozes, mesmo dentro do universo da educação, clamam que se está a promover o "facilitismo" ou a defender que "então passam sem saber". A leitura das caixas de comentários às notícias sobre estas questões é elucidativa.

Nesta conformidade e do meu ponto de vista, a questão central não é o chumba, não chumba, e quais os critérios ou o número de exames, mas sim que tipo de apoios, que medidas e recursos devem estar disponíveis para alunos, professores e famílias desde o início da percepção de dificuldades com o objectivo de evitar a última e genericamente ineficaz medida do chumbo.

Este discurso não tem rigorosamente a ver com "facilitismo" e, muito menos, com melhoria "administrativa" das estatísticas da educação, uma tentação a que nem sempre se resiste. Pelo contrário, “facilitismo” é acreditar que a retenção resolve o problema do insucesso.

É essencial promover e tornar acessíveis a alunos, professores e famílias apoios e recursos adequados e competentes de forma a evitar a última e genericamente ineficaz medida do chumbo. É fundamental não esquecer que o insucesso continua a atingir fundamentalmente os alunos oriundos de famílias com pior condição económica e social pelo que inibe o objectivo da mobilidade social. A associação entre o insucesso e a pobreza em Portugal é, aliás, a mais forte entre os países europeus. Em Portugal os bons alunos são os que mais trabalham em casa, TPCs e explicações, dado a que, evidentemente, não é alheio ao nível de escolaridade dos pais e ao estatuto económico.