São preocupantes os dados sobre as circunstâncias sociais e económicas em que vivem muitas, demasiadas, crianças em Portugal. Apesar de frequentemente aqui abordar estas questões, é preciso insistir.
Num relatório da Direcção-Geral
de Estatísticas da Educação e da Ciência, “Assimetrias entre Escolas: Ensinos Básico e Secundário, 2022/23”, agora divulgado, evidenciam-se assimetrias muito
significativas entre escolas no que se refere ao contexto de vida dos alunos. A
situação é mais grave no 1.º ciclo, mas verifica-se em todos os ciclos, bem
como no secundário e no ensino profissional.
Sem surpresa os maiores
contrastes verificam-se nas regiões de Lisboa e Porto. Relativamente a Lisboa, considerando
82 escolas de 1.º ciclo analisadas, em metade existem mais de 50% de alunos que
beneficiam da Acção Social Escolar e em pelo menos cinco o número é superior a
80%.
Considerando a escolaridade das
mães, variável utilizada em estudos desta natureza, 85% das mães de alunos com
ASE não têm o ensino secundário face a 3% de mães de alunos sem apoios sociais
No Porto a situação é da mesma
natureza, a percentagem de alunos do 1.º ciclo com apoio da ASE varia entre 77%
e 7% e das 46 escolas analisadas, em 37% metade ou mais dos alunos beneficia da
ASE sendo que seis destas escolas têm taxas superiores a 70%.
É na verdade preocupante, precisamos de insistir e repito o que há pouco aqui escrevi.
Há pouco tempo diversas
organizações da sociedade civil divulgaram e chamaram a atenção para o aumento
do risco de pobreza entre as crianças portuguesas requerendo a atenção das
políticas públicas sectoriais. De acordo com os dados mais recentes do INE
referentes a 2023 verifica-se "um aumento da taxa de pobreza infantil com
347 mil crianças em risco de pobreza monetária". "São mais 44 mil do
que no ano anterior", de referem os subscritores desta iniciativa.
É ainda de registar que a
"taxa de risco de pobreza infantil em 2023 foi de 20,7%",
correspondendo a um regresso aos valores de 2017, o que coloca as crianças como
o "grupo etário que regista a maior taxa de risco de pobreza e também
aquele em que se observa uma evolução mais desfavorável deste indicador",
Parece, assim, que estamos longe
de conseguir minimizar os riscos de pobreza e exclusão importa insistir e
apelar a que estas matérias constituam preocupações sérias das políticas
públicas em diversas áreas.
Sabemos que a educação tem um
papel crítico neste processo. Retomando notas que aqui recentemente deixei,
recupero o relatório, “Portugal, Balanço Social 2023”, realizado pela Nova SBE
Economics for Policy. De acordo com o trabalho, 82% das crianças pobres com
três anos ou menos não frequentam pelo menos 30h de creche. Também no intervalo
entre 4 e 7 anos são também as crianças mais pobres que não frequentam educação
pré-escolar.
Apesar da gratuitidade da
frequência da creche em 2022, a insuficiência de vagas dificulta o acesso das
famílias de menor rendimento apesar de alguns efeitos decorrentes do Programa
Creche Feliz.
Está bem estudada a relação entre a situação económica, laboral e nível de literacia familiar no trajecto pessoal. E também sabemos que situações de "guetização da pobreza" são um obstáculo à sua minimização.
Também sabemos que a pobreza tem
claramente uma dimensão estrutural e intergeracional, as crianças de famílias
pobres demorarão até cinco gerações a aceder a rendimentos médios, um indicador
acima da média europeia.
A escola é certamente uma ferramenta poderosa de promoção de mobilidade social, mas, por si só, dificilmente funciona como elevador social. Muito menos o fará em circunstâncias em que a maioria vive em piores condições.
O impacto das circunstâncias de
vida no bem-estar das crianças e em aspectos mais particulares como o
rendimento escolar ou o comportamento é por demais conhecido e essas
circunstâncias constituem, aliás, um dos mais potentes preditores de insucesso
e abandono quando são particularmente negativas, como é o caso de carências
significativas ao nível das necessidades básicas.
Algumas vezes, quando penso
nestas matérias não resisto a recuperar uma história que conto muitas vezes,
coisas de velho como sabem, e que foi umas das maiores e mais bonitas lições
sobre educação que já recebi. E mais uma vez.
Aconteceu há já uns anos em
Inhambane, Moçambique, também conhecida por Terra da Boa Gente. Num início de
manhã, eu o Velho Carlos Bata, um homem velho e sem cursos, meu anjo da guarda
durante as semanas que lá estive em trabalho, íamos a passar por uma escola
para gaiatos pequenos e o Velho Bata, parou a olhar. Não estranhei, era um
homem que não conhecia o significado de pressa.
Um tempinho depois disse-me que
se tivesse “poderes de mandar” traria um camião de batata-doce para aquela
escola. Perante a minha estranheza, explicou que aqueles miúdos teriam de comer
até se rir, “só aprende quem se ri”, rematou o Velho Bata.
Pois é Velho, miúdos com fome e
que passam mal não aprendem e vão continuar pobres. E infelizes, não se riem.
Ontem, hoje e amanhã. Não podemos falhar.